CAPÍTULO DOIS
Ângela, de braços dados com seu convidado, procurava sincronizar os movimentos aos dele; observando-o apoiar-se vigorosamente na bengala de cedro, cujo design artesanal e confortável, ajudava a equilibrar seus passos; embora ainda pisasse com dificuldade, procurando disfarçar tal limitação física, mantendo uma expressão altiva, quase indiferente no semblante. Distraiu o olhar pela espaçosa dimensão da sala, decorada por uma mobília clássica, tradicional, exibindo peças provavelmente herdadas de uma saudosa história familiar. À sua frente, uma grande mesa chamava atenção pelos pesados pés de mogno, ostentando na superfície, numa disposição detalhista, duas garrafas de vinho de boa safra; taças de impecável transparência; pratos, talheres e ornamentais travessas, contendo vistosas receitas gastronômicas, expostas à tentação do paladar mais exigente. Os olhos de Victor, na medida que a distancia diminuía, agora fixavam-se na figura do anfitrião, sentado à cabeceira, onde mantinha sua seletiva concentração no conteúdo do noticiário televisivo, em panorâmica tela de alta definição, instalada na parede dianteira. Na estimativa de Victor, deveria ser um homem de seus cinquenta e poucos anos; corpo esguio, definido, assemelhando-se ao perfil de um atlético professor de dança. O corpo aliava-se ao desenho facial, quase intocável pelas intrusas marcas do tempo; conferindo-lhe uma inegável jovialidade. Introspectivo, gestual contido, os olhos esverdeados revelavam entretanto, uma aguçada percepção, que fluía do foco mais específico, ao conhecimento globalizante do que acontecia ao seu redor.
- Papai, eu não disse que o tiraria da cama, bem antes do que ele esperava ? Victor Aguiar, este é meu pai, Adriano Leminscky. - apresentou Ângela, nítidamente animada.
- Prazer em conhecê-lo. - complementou Victor reservadamente, em tom de mero protocolo social.
Sem desviar os olhos do noticiário, Leminscky disparou um comentário mordaz.
- O acidente só não foi mais grave, porque diminuiu a velocidade, pelo atalho da estrada, que passava por minha propriedade. Costuma beber além da conta, ou estava muito nervoso, fugindo de alguém ?
Após um breve silêncio constrangedor, especialmente para Ângela; veio a resposta de Victor, com tranquila ironia.
- Nenhuma das duas possibilidades. Apenas devo ter sido imprudente ao volante, assim como o senhor agora, com as palavras; quando se propõe a testar as pessoas.
Ângela olhou surpresa para os dois, sem acreditar no rumo que aquela conversa poderia tomar. Jamais imaginou que o primeiro encontro entre eles, fosse pautado por inoportuna tensão.
Leminscky pela primeira vez, teve a consideração de encará-lo, esboçando um sorriso debochado entre os lábios.
- Que outra maneira de testar a coragem de um homem, se não colocá-lo pouco a vontade, em território desconhecido ? Gosto de quem não elabora o que vai dizer. Mostra firmeza de caráter. Será que podemos esquecer e recomeçar do zero ?
- Perfeitamente. - concordou Victor, inalterado.
- Sentem-se, por favor. Espero que nosso hóspede aprecie o salmão ao molho de alcaparras, com batatas gratinadas. Dona Leonora caprichou na escolha. Me acompanham neste saboroso vinho tinto Concha y Toro ? - comentou Adriano, ao observar a providencial chegada de Leonora; apontando discretamente para uma das garrafas sobre a mesa.
- Obrigado. - aceitou Victor, curiosamente motivado, pelo temperamento do anfitrião.
A partir daí, a interação entre ambos, tornou-se estranhamente promissora; articulando-se por uma "montanha russa" de temas e argumentações, da mais imprevisível diversidade, em relação aos quais, Ângela quase não conseguia se pronunciar, diante da dinâmica fluência de pontos de vista, temperados pelo pensamento astuto e de ambivalente senso de humor do pai; assim como das ponderações e divergências contextuais, do experiente psicólogo.
Em determinado momento, o assunto em pauta, foi interrompido pela captura do olhar de Leminscky, em relação a uma matéria televisiva, que abordava crimes seriais ritualísticos, ainda não inteiramente elucidados pela justiça. Entre eles, a menção a um crime bárbaro, que chocou a opinião públicaa, no dia de um específico eclipse lunar.
- Que coisa horrível ! Por causa de um facínora, um fenômeno tão misteriosamente encantador, passa a ser associado a uma ideia de morte. Aliás, alguém saberia me dizer, o motivo da coloração vermelha da lua ? - indagou Ângela, sinceramente interessada.
- É um acontecimento raro. Só neste século, serão apenas oito manifestações. E eles ocorrem em tétrades, ou seja, obedecem a uma sequencia irregular de quatro aparições, num período de mais ou menos dois anos. A coloração avermelhada, é por causa da filtragem dos raios solares pela atmosfera terrestre, que acaba convertendo a tonalidade azul para vermelha. - esclarece Victor, demonstrando também ser um informal apreciador de astronomia.
- Vejo que a psicologia, não é sua única paixão. - comenta elogiosamente Ângela.
A referência ao duplo assassinato ocorrido dois anos atrás, que acabou popularmente conhecido como "crimes da lua de sangue", despertou o irresistível comentário do jornalista.
- A psicologia criminal deveria ter uma importância mais decisiva e reconhecida na investigação destes casos. Não sou da sua área, mas meu faro jornalístico, não acredita na versão de crime ritualístico, motivado por uma crise psicótica.
- É mesmo ? E qual seria a sua hipótese ?
- Me corrija se estiver errado. As duas mulheres foram mortas naquela mesma noite, com uma evidente alusão bíblica ao raro fenômeno lunar. Na casa, também foi encontrado o corpo do assassino; com claras indicações de um provável suicídio, depois de cometer a barbárie. Em sua caminhonete, foi achado um notebook, onde a polícia descobriu a existência de uma suposta mensagem de despedida, onde demonstrava lúcido e sofrido arrependimento pelos assassinatos; passando a idéia de um temperamento instável, explosivo, acometido por uma imaginação delirante, que lhe ordenara executar aquela espécie de cerimonial. Enfim, tudo muito certinho, politicamente preciso, conduzindo a opinião pública, a um juízo de valor sobre aquele homem, que a meu ver, não corresponde a realidade dos fatos.
- O senhor suspeita de uma farsa ?
- Sim. Aquele tétrico espetáculo não era fruto de uma distorcida veneração religiosa. Uma das mulheres encontradas, por exemplo, era noiva do rapaz que se suicidou. A outra, uma garota de programa, que não teve sequer familiares, para reclamar o corpo. O que observei não foi um ritual insano; mas algo muito mais calculista, teatral; para que acreditássemos naquele cenário.
- Se entendi bem, está considerando uma possível ação planejada; quem sabe até por um segundo criminoso, que poderia ser o mentor intelectual de toda tragédia.
- Você leu meus pensamentos, meu caro. Tentaram vender a ideia de um serial killer, que poderia vir a matar novamente, escolhendo vítimas de forma aleatória, provavelmente no próximo período da lua de sangue. Só que o fenômeno aconteceu por mais duas vezes naquele ano e nenhum outro crime com as mesmas características foi comprovado nestas datas. Um deles, no meu entender teria arquitetado o plano, enquanto o outro, certamente mais jovem e forte, teria fisicamente executado. No final das contas, teria sido traído e eliminado, após o serviço prestado. Faz sentido, doutor ? - provocou o jornalista, com certo ar de superioridade, em sua explanação.
- Se estivermos falando de um psicopata, provavelmente sim.
- Vocês psicólogos; e estudiosos da mente, insistem em tratar a maldade humana, como caso de loucura. E se for um sujeito normal, determinado em seu propósito e capaz de manter o sangue frio para controlar todas as variáveis a sua volta, esperando sempre escapar ileso de seus desafios ?
- A loucura a que me refiro, é moral e não necessariamente, mental. Existem vários níveis de psicopatia ou sociopatia, como ainda prefiro chamar esse transtorno de personalidade. Existe uma corrente de neurocientistas que desde 2003, encontraram através de testes, monitorados por sofisticados exames de ressonância magnética, algumas disfunções cerebrais, que poderiam causar a maioria dos sintomas desse quadro clínico, especialmente em casos de assassinos seriais; aquela categoria mais grave, que chamamos de psicopatas malévolos. Eles teriam prazer no próprio ato de matar e de não serem pegos; sendo esta uma tentadora recompensa. Mas acredito numa natureza basicamente semelhante a tal perfil, relacionada ao nosso histórico pessoal, através de um inconsciente coletivo, que nos ligaria aos antepassados mais primitivos, antes mesmo de qualquer influência civilizatória. Assim, quando chamamos de monstro, um criminoso pedófilo por exemplo, não deveríamos nos surpreender pelo que se tornou com o passar dos anos; mas sim, pelo que ele não evitou deixar ressurgir em sua personalidade, fingindo aceitar as regras da sociedade, enquanto mantinha em sigilo, uma total descrença e repúdio em relação às mesmas. Esta natureza brutalmente irracional, não apresentaria qualquer resquício de consciência moral, de culpabilidade; como se presentificasse a herança de seus ancestrais.
- Entendo. A culpa seria então, o passaporte para a nossa humanidade.
- Isso mesmo. Sem ela, somos insensíveis canibais de todo e qualquer tabu da civilização.
- Nossa, mas essa conversa está muito elevada pra o meu gosto ! Papai, vamos mudar de assunto ? Algo mais leve, para acompanhar a digestão ? - interfere Ângela, com aquele humor intransigente, que lhe era tão peculiar.
Adriano, olhava atentamente seu interlocutor, com inegável identificação, quando se voltou para a filha e tocando-lhe carinhosamente a mão, aprovou de imediato o seu pedido.
- Tem razão, querida ! Depois do almoço, se nosso convidado concordar, gostaria de continuar a nossa troca de ideias; o que certamente parece fascinar a nós dois.
- Com toda certeza. - reforçou Victor, olhando-os com simpatia.
No decorrer do encontro, os três pareciam interagir cada vez mais, abordando a princípio com certa discrição, particularidades sobre suas trajetórias de vida, que ao sabor do bom vinho que degustavam, iam se tornando acentuadamente descontraídas; temperadas por um bom humor capaz de aproximá-los de um discurso intimamente familiar. Ângela falava sobre situações imprevistas e engraçadas dos tempos de colégio; e de como ela e sua mãe eram unidas, tornando-se fiéis confidentes. Adriano lembrava o conturbado início de seu trabalho como jornalista, ainda no derradeiro período da ditadura militar, mencionando fatos inusitados, respaldados vez por outra, por suas preferidas citações filosóficas. E Victor, embora correspondesse ao agradável entrosamento, expondo opiniões sempre muito pertinentes e espirituosas, era o que menos falava sobre o passado, preferindo manter-se na posição de cordial ouvinte; demonstrando o desejo de conhecer mais intimamente, a maneira de ser e de viver, daquelas pessoas que generosamente o acolheram.
Quando Ângela, ao final de um divertido comentário, não consegue inibir um inesperado e gracioso bocejo, que denunciava sua sonolência; entre risos descontraídos, admite ter abusado um pouco de seu limite natural para bebida; decidindo então se despedir, alegando atender um chamado irresistível da cama. Após a despedida de sua filha, Adriano sugere ao hóspede, acompanhá-lo até o seu escritório, onde gostaria de apresentá-lo a sua estimada biblioteca particular. Lá chegando, entre uma referência e outra, a um diversificado acervo de obras clássicas, Adriano convida-o a sentar-se numa confortável poltrona, que ao primeiro olhar intuitivo de Victor, parecia ser o favorito lugar de poder e reflexão, do próprio anfitrião; enquanto este se acomodava em um compacto sofá, situado próximo à escrivaninha, repleta de papéis que margeavam o antigo e solitário computador.
Depois de uma breve pausa, fitando por alguns segundos a serena fisionomia do psicólogo, tateou pelo bolso da calça, buscando o isqueiro e o maço de cigarros quase vazio.
- Se importa ? Quer que eu abra a janela ?
- Não será preciso. Larguei faz um ano. Aconselho a fazer o mesmo.
- Já fui mais compulsivo. agora me limito aquelas horas onde a vontade fala mais alto, como após o almoço, por exemplo. Ajuda a equilibrar a ansiedade. - comentou, acendendo rapidamente o cigarro.
Minha filha gostou de você !
- Ela disse isso ?
- Todo pai amoroso, sabe quando o olhar de sua filha, revela um brilho diferente. Confessou sentir uma grande afinidade por você; a ponto de em pouquíssimo tempo falar muito dela, da mãe, sobre mim ... O fato de ser psicólogo, deve ajudá-lo a cativar o imaginário das pessoas, levando-as a não serem tão defensivas, não é mesmo ?
- Na maioria das vezes, é o contrário dessa expectativa. O medo de que acabem falando mais do que o necessário, aumenta a desconfiança e o silêncio.
- Minha filha então, figura entre seus atendimentos bem sucedidos. - retrucou irônicamente.
- Pode ser. Mas por que falamos sobre isso ? A receptividade dela em relação a mim, o incomoda de alguma forma ?
- Não; acho bom que ela tenha um amigo. Nos últimos tempos, Ângela não foi muito feliz em termos de referência masculina, pelo menos entre os jovens de sua convivência. Não sei o quanto de sua intimidade, chegou a lhe confidenciar, mas muito do seu isolamento aqui comigo, foi reforçado por uma tentativa de estupro que ela sofreu.
Victor permaneceu calado, sem transparecer qualquer sinal de familiaridade anterior com o relato. Sua atenção silenciosa, estimulou Adriano a prosseguir.
- Ângela é tudo para mim. Sempre foi. Mesmo antes da doença de minha mulher, lembro-me da cena de ciúmes que fazia, quando chegava em casa e só parecia ter olhos para minha menininha; brincando e procurando saber como foi o seu dia, antes mesmo de procurar por minha mulher no quarto, abraçando-a com aquela impetuosa sensualidade, típica dos casais apaixonados. Mas depois ela acabou entendendo e isto só aumentou nossa aliança amorosa. E que nenhuma relação de casal, pode ser tão forte, quanto a dependência afetiva que os pais sentem pelos filhos. Vocês psicólogos, sabem o quanto uma menina pode ser fascinada pelo pai, da mesma forma que mães parecem ficar cegas para todo resto, quando se trata de proteger um filho.
- Nada mais freudiano do que este triângulo amoroso em família. - assegurou Victor, sentindo-se mais a vontade na conversa.
Adriano esboçou um sorriso melancólico, completando: - Embora ás vezes, a conexão afetiva entre pai e filha possa ir muito além de uma sublimada situação edipiana.
- Vejo que a psicanálise também é seu foco de interesse.
- Como filósofo e por trabalhar constantemente com as mais variadas fontes de informação, que o jornalismo nos impõe, a gente acaba se envolvendo por muitos temas e pensadores. Conheço pouco da prática analítica, mas os textos de conteúdo antropológico de Freud, como "Totem e Tabu" ou "O Mal - Estar na Civilização", sempre despertaram meu interesse, ampliando-me a visão sobre a natureza humana. Por isso gostei tanto da abordagem que fez ainda agora sobre a possível essência ancestral da psicopatia.
- Desculpe, se acabei desviando-lhe do assunto. Mas o senhor se referia a uma forte conexão com sua filha ...
O jornalista surpreendeu-se positivamente, com o franco interesse pela iminência de seu desabafo. Após tragar pela última vez, concluiu precocemente o hábito quase terapêutico, esticando-se para amassar metade do cigarro, na superfície de um velho cinzeiro de prata sobre a escrivaninha.
- Depois da morte de minha esposa, eu senti pela primeira vez na vida, o chão escapar sob meus pés. era uma sensação horrível, de total desamparo como homem, como pai, chegando a afetar minha disciplina profissional. Enveredei pela bebida; ausentava-me das obrigações paternas; comecei a me envolver com pessoas e ambientes, que acabaram me apresentando a uma face obscura de minha personalidade; que até então, jamais fizera parte dos meus planos. Nesta época, imagino o quanto minha filha deve ter se sentindo sozinha, enquanto o pai, por medo de encará-la e não saber o que dizer, nem o que fazer da vida, fosse obrigado a admitir seu fracasso como homem. Estava obcecado por querer esquecer o quanto um dia tinha sido perfeito a minha vida; e me atirava cada vez mais fundo, aos mais pervertidos desejos, com todo tipo de mulher que aceitasse participar de minhas fantasias autodestrutivas, dentro ou fora da prostituição. A gota d'água, que me fez começar a emergir desse pesadelo, foi quando cheguei em casa inteiramente embriagado, com uma dessas mulheres, violando o único santuário de decência e amor próprio, que ainda me restava. Nesse dia, expus minha filha a uma sombria realidade, que ela não merecia conhecer. Na manhã seguinte, sóbrio e coberto de vergonha, a chamei para conversar e prometi com todas as minhas forças, nunca mais abandoná-la e humildemente implorei por sua ajuda.
- Quantos anos ela tinha, quando conversaram sobre este pacto de confiança ?
- Quatorze para quinze anos. Já era uma mocinha. O rosto e o corpo porém, já guardavam uma impressionante semelhança com a mãe. Quando a olhei neste dia, era como se tivesse voltado no tempo, quando cortejava minha mulher, assim que nos conhecemos na adolescência.
- E a fidelidade a este pacto de amor, fez com que conseguisse vencer a obsessão por todos os seus vícios.
- De certa forma, sim ! É claro que as coisas não desaparecem de uma hora para outra, por encanto; mas eu nunca mais deixei de ter tempo para a minha filha, dedicando-me a ampará-la e orientá-la, mesmo quando ainda lutava por me desvencilhar de certas amarras, que ainda me ligavam aquela vida clandestina. Passando agora, mais tempo perto dela, descobri o quanto sentiu minha falta e o quanto permiti, que o mundo a machucasse.
- Foi quando descobriu sobre a violência que ela sofreu ?
- Exatamente. Decidi então largar tudo na cidade grande e me mudar com Ângela para esta casa, como uma forma de retiro espiritual, para que pudéssemos renascer mais fortes e unidos de todo sofrimento que vivenciamos. Providenciei então, a vinda de dona Leonora para cá. Na infância de minha esposa ela tinha sido sua babá, veja só ! E sempre me falou com tanto carinho da saudade que sentia dela, apesar de tantos anos depois ainda se falarem por telefone ou se visitarem esporadicamente; que me veio a ideia de trazê-la para o convívio de minha filha; resgatando um certo toque familiar, se é que me entende.
- Claro. E de certa forma, ela voltou a compor simbolicamente aquele triângulo afetivo, como uma espécie de dèja vu, não é mesmo ?
- Tem razão. E foi a melhor coisa que poderia acontecer. Houve um certo isolamento voluntário, para vivermos uma modalidade de entrosamento muito particular. Nos tornamos extremamente seletivos em relação às pessoas e com isso, ficávamos protegidos de possíveis ameaças externas.
- Estas "ameaças" a que se refere
- Por que não ? O mundo aí fora, não possui mais o lirismo boêmio de nossa época. É violento, impiedoso e morbidamente individualista. Sabe o que penso às vezes, Victor ? Foi um erro antropológico afastar da herança cultural, a responsabilidade dos pais, por iniciarem sexualmente suas filhas. A maioria dos traumas que elas acabam carregando para o resto de suas vidas, vem de experiências nefastas, abomináveis, com pessoas indignas de tamanha entrega emocional de corpo e alma.
- Está falando de incesto propriamente dito, ou de mera transferência afetiva ?
- Meu caro, não existiria o tabu, se não houvesse o desejo. Um desejo que diferentes sociedades recalcaram durante séculos; mas ainda hoje, sobrevive latente, no inconsciente coletivo da humanidade.
- Como amor inibido em sua finalidade, até posso concordar; isto é, na dimensão do simbólico. Mais do que isso, estaríamos migrando para a perversão da própria estrutura familiar. O tabu subsiste, para preservar a célula familiar de uma completa desintegração, a partir de rivalidades passionais que surgiriam inevitavelmente, levando grupos sociais à extinção. E estou me atendo apenas à sequela cultural; quando sabemos também dos possíveis riscos genéticos.
- O fator dos genes é bem controverso, como bem sabe. E depois eu não falei de pais constituindo novas famílias com suas filhas; mas sim, de adultos afetuosamente conscientes da importância de prepararem sua prole, para o exercício da sexualidade com amor. Um estranho dificilmente conseguiria combinar a experiência carnal, ao sublime ato de cuidar, daquele com quem diariamente dividiria, o maior prazer de se sentir vivo ! Em várias mitologias; entre os gregos por exemplo, o incesto era praticado sem acusação moral; assim como nas dinastias do antigo Egito, ou mesmo hoje, entre comunidades tribais ou certos espécimes do reino animal. Aprecio a abordagem do antropólogo Lévi-Strauss, quanto a origem do tabu, classificando-o como uma descoberta feita pelos homens, para que pudessem melhorar seus negócios, fechando vantajosos acordos com outras tribos, a partir do casamento entre aldeias diferentes. Na idade média, como também deve ser de seu conhecimento, reis e rainhas da Europa, casavam-se com primos e irmãos, para manter unificados seus reinos e fortunas. Era comum entre os membros da real nobreza, o fato de um pai viúvo, colocar a filha no lugar de sua esposa.
- São fatos de exceção e que não raras vezes, foram o estopim de sérias convulsões sociais, num futuro próximo. - contestou mais veementemente, o psicólogo.
- Tudo pode ser pretexto, para eclosão da brutalidade humana; especialmente a proibição de algo que buscamos satisfazer com estranhos, potencializando a magnitude racional de nossas fantasias, por não nos importarmos de verdade, com o bem estar de quem levamos para a cama. Como jornalista, cheguei a fazer uma matéria sobre incesto, visitando áreas do interior do Brasil, onse ele seria mais comum. Estive em determinada região, no Tocantins, onde haviam relatos de homens que iniciavam sexualmente suas filhas; visto que na cultura deles, esta seria uma "obrigação de pai". A lenda do Boto na região, vem daí. Surgiram assim os filhos do Boto; fruto do relacionamento inconfesso, entre pais e filhas. A lenda fora criada para tirar a culpa desses homens e justificar a gravidez das filhas. Poderia citar ainda muitos outros casos, que investiguei tanto no interior do Maranhão, como na região Amazônica, entre a população ribeirinha. - insistiu em tom professoral o convicto jornalista.
- Sr. Leminscky, só posso entender o clamor de seus argumentos, ao especular sobre uma surreal mudança secular dos costumes, como a delirante tentativa de um pai superprotetor, impedir que os filhos padeçam dos inevitáveis sofrimentos da vida; que por fim só iriam fortalecê-los a fazerem escolhas menos autodestrutivas e mais sensatas no futuro.
- Não me decepcione, com uma linha de raciocínio tão estreita e conservadora. - disparou o jornalista, alterando o tom de voz.
- Agora, me escute ! - advertiu Victor. - Quando falamos de incesto, não podemos ignorar a linha tênue que o separa da motivação pedófila. Ainda que nas aparências, o sexo pareça consensual, eleé resultante de uma relação desigual de poder. O todo poderoso poder paterno, que no auge do seu narcisismo, exerce com sedutora sutileza e manipuladora bondade de intenções, um domínio psicológico sobre alguém mais inexperiente; convencendo tal pessoa a partilhar da liberdade de uma escolha, para a qual não tinha maturidade ou condições emocionais, de expressar sua recusa.
- É uma análise bastante tendenciosa, como se procurasse enquadrar todo questionamento filosófico, que ousa navegar contra a corrente, na vanguarda de valores alternativos, como um risco iminente para a sociedade. - protestou, o jornalista.
- A maioria das pessoas que conheci,tanto particularmente como no consultório, que costumavam generalizar a delicada contextualização de conceitos polêmicos, colocando-se acima da ética das relações, banalizando a consequência de seus próprios atos, apenas pelo prazer da autoafirmação; nunca se revelaram com o passar do tempo, personalidades confiáveis.
- Estou quase me sentindo um psicopata incorrigível ! - concluiu Adriano sarcasticamente.
- E geralmente estas mesmas pessoas, buscavam uma obstinada classificação para si mesmas, a fim de que pudessem contestá-las, para não se sentirem tão desgarradas do rebanho, que ambicionavam controlar.
Um insustentável silêncio; tenso, constrangedor, parecia pesar sobre os ombros daqueles dois homens. No entanto, este fora quebrado casuisticamente, pela inesperada chegada da governanta, trazendo cordialmente, ainda que atrasado, o cafezinho que deixara de servir, ao final do almoço.
- Espero não estar interrompendo algum assunto importante. Mas quando o debate é fértil, a cafeína nos deixa mais alertas. - comento dona Leonora, simpaticamente.
Adriano, esboçando uma reação zombeteira, após um momentâneo transe provocado por uma rivalidade contida, não resistiu ao comentário.
- Sirva o cafezinho apenas para nosso hóspede. Já produzi adrenalina suficiente, capaz de provocar uma inoportuna dor de cabeça. Se me dão licença ... - despediu-se, erguendo-se da poltrona, imbuído de calculista arrogância.
Victor inclinou-se para frente e descansando o queixo sobre a segura firmeza da bengala, desviou o olhar, lamentando tardiamente pelo tempestuoso rumo daquela conversa.
A tarde arrastou-se numa interminável monotonia. Victor repousava em seu quarto, tentando concentrar-se em um dos livros que pegara emprestado do escritório do jornalista; mas quando ouvia algum ruído diferente pelo corredor, o semblante de Ângela, vinha-lhe inevitavelmente à memória. Talvez a lembrança roubasse sua tênue atenção da leitura, pelo fato incomum, de já ter anoitecido e a jovem nem sequer ter feito uma nova visita; fosse para saber de sua saúde ou mesmo inteirar-se sobre os rumos da polêmica conversa com seu pai. A possibilidade de que ela estivesse solidária a uma última impressão demasiadamente intolerante, que Leminscky certamente construíra a seu respeito, deixava Victor inseguro, frente a um possível distanciamento de Ângela, para o qual não se sentia preparado, depois de chegar tão perto de conquistá-la.
Ouviu passos em direção à porta e imediatamente empertigou-se na cama, moldando o travesseiro às costas, enquanto abandonava o livro, displicentemente sobre o colchão. Mas logo a esperança converteu-se em decepção, ao deparar com a figura austera, polidamente simpática de dona Leonora. Ela trazia uma grande bandeja portando uma sopa bem quente, acompanhada de uma pequena travessa com torradas.
- Ainda bem que vi as luzes acesas. Detestaria ter de acordá-lo. Como o jantar não é hábito formal nesta casa, ficando à escolha de cada um; resolvi preparar um saboroso caldo verde. Afinal, a noite promete ser bem fria.
- Obrigado. A surpresa é muito bem vinda. Teria ficado ainda melhor, se acompanhada pela gentil presença de minha mais recente amiga ...
- Dona Ângela ?
- Claro que sim !
- Ela se recolheu por toda a tarde. Ainda agora passei pelo seu quarto e as luzes já estavam apagadas. Às vezes ela gosta de ficar quietinha no seu canto, como se o quarto fosse uma espécie de portal, para um outro mundo bem particular. Resquícios da adolescência; o senhor entende.
- Posso entender, mas não deixo de lamentar. - acrescentou Victor discretamente inconformado.
- Bom apetite; com licença. - despediu-se a governanta, no momento em que passava a bandeja, para os braços ligeiramente estendidos, de Victor.
Ouviu o barulho da porta se fechando, quando paralelamente, avistou um inusitado objeto, escondido sob a pequena travessa de torradas. Era um envelope branco, tipicamente utilizado para cartões, anexados a embalagens de presentes. Não estava lacrado. Victor intrigado, retirou o papel e leu a mensagem, que dizia: "Lamento tê-lo deixado sozinho. Mas a noite é uma criança. Logo estaremos juntos. Com todo o meu carinho, Ângela".
Victor não conseguiu conter o largo sorriso, que de imediato, se desenhou entre os lábios. Direcionou o olhar para a porta do quarto, como se a excitante imaginação, já antecipasse a prazerosa imprevisibilidade do mundo real. Cogitou em seguida, se a governanta saberia do conteúdo da mensagem, perguntando-se até que ponto apoiaria a atitude de Ângela, ou simplesmente a monitoraria, a pedido da ortodoxa figura do pai. No entanto, concluiu que toda dúvida ficaria em segundo plano, diante da providencial oportunidade de ter aquela fascinante mulher novamente ao seu alcance.
Deliciara-se com a refeição, surpreso pelo renovado apetite. Passado alguns minutos colocara a bandeja de lado, voltando-se então, para o prosseguimento da leitura. Aos poucos, começava a sentir as pálpebras pesadas, ensaiando seu descanso, até fecharem em definitivo a sonolência. Devem ter transcorrido algumas horas, até que o psicólogo acordasse por si mesmo, experimentando uma sensação desagradável em sua nuca, pela desajeitada posição em que dormira. O livro estava caído sobre o colo e a luz do quarto ofuscava-lhe momentaneamente a visão. Olhou para o relógio de pulso, preocupando-se em como já era tarde da noite. Será que Ângela chegou e vendo-o adormecido, desistiu de acordá-lo ? Não fazia sentido. Os olhos já se adaptavam a luminosidade ambiente, quando manteve-se em silêncio, ansiando por ouvir alguma aproximação pelo corredor. Resolvera então, levantar-se cautelosamente, buscando a bengala encostada na parede, ao lado cama. Caminhou em passos largos até a porta, aprovando o bom desempenho dos movimentos de sua perna, ao experienciar um incômodo bastante reduzido. Abrindo-a, começou a transitar com lentidão pelo corredor, palidamente iluminado, enquanto passava pela porta de dois outros aposentos; avistando logo a frente uma última porta ao fundo, que chamou sua atenção. Um fino feixe de luz, ligeiramente avermelhada, projetava-se parcialmente por debaixo dela, avançando alguns centímetros pelo piso do corredor. Victor aproximou-se, ficando surpreso por outro detalhe um tanto peculiar. A porta, que ao longe parecia trancada, demonstrava agora, estar apenas sutilmente encostada. Ouviu alguns sons, como murmúrios, seguidos por respirações contidamente ofegantes. Esticou a mão, hesitando por alguns segundos. Mas um atordoante pressentimento provocou-lhe um recorte amargurado entre os lábios, que pareciam prensar-se involuntariamente, resistindo a uma incompatível expectativa. Olhar fixo, na cautelosa precisão de seus dedos, tocou levemente a maçaneta, empurrando a porta o suficiente para lateralizar-lhe a visão, expondo-o para algo, que indignava seu testemunho.
Era uma cama de casal, invadida pela rubra claridade de uma luminária instalada no alto da parede, pouco acima do leito. Um sinuoso corpo de mulher, contorcia-se lânguidamente, entregue por inteiro, ao impulsivo bailado erótico sobre a pélvis de seu parceiro, limitando-o a acompanhar em coadjuvante sincronia, o ritmo daquele cavalgar. As mãos dele, adornando-lhe os seios, deleitavam-se numa massagem suavemente ansiosa, reverenciando aquela nudez quase escultórica, buscando na ousadia de cada toque, a efêmera eternidade do êxtase. Ela inclinou o rosto para trás e depois para o lado, antes de levar os dedos à boca deslizando-o tremulamente pelos lábios, como se apesar de toda a entrega ao desejo, uma parte da consciência, buscasse num lampejo de controle, concentrar em prolongados gemidos, um arrebatador grito de prazer.
Nesse instante, a fisionomia de Ângela, tornou-se nítida ao olhar perplexo e paralisado de Victor. Quando ela deitou o corpo, abraçando carinhosamente o parceiro, a ausência de sua verticalidade, apenas confirmou para Victor, a cena receiosamente esperada. Ângela e o pai eram amantes.
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