CAPÍTULO TRÊS
O toque suave combinado ao calor úmido daqueles lábios, pareciam resgatá-lo de um sono intranquilo, deixando na boca, um sedutor convite ao despertar.
- Bom dia, meu príncipe! No meu conto de fadas feminista, os papéis estão invertidos; do jeitinho que eu gosto. - comentou Ângela, numa voz delicadamente rouca, quase sussurrada ao ouvido de Victor.
Ao abrir os olhos, ele não esboçou qualquer movimento, limitando-se a observá-la intrigado, por intermináveis segundos.
Ângela não chegou a se dar conta, da contida carga de hostilidade e desconfiança em seu olhar, ao equilibrar a bandeja do café da manhã em seu colo, enquanto sentava-se ao lado dele na cama.
- Estas torradas com geleia de damasco, ficam uma delícia. Esperei que fôssemos tomar o café juntos na sala de jantar, mas como já estava quase na hora do almoço, sem você aparecer resolvi surpreendê-lo, com uma gentileza típica de recém casados. Gostou ?
Victor ergueu-se lentamente, alteando os travesseiros e recostando-se, para encará-la no fundo dos olhos, sem dizer palavra.
Ângela baixou o rosto, pressentindo o sorriso de menina esmaecer-se de imediato, frente aquele silêncio inquisidor. Não demorou para que começasse a se justificar, ainda que supostamente protegida, por um tênue véu de hipocrisia.
- Já sei porque ficou zangado comigo. E não lhe tiro a razão por isso. Mas ontem eu não estava bem. Meu pai teve mais uma daquelas crises depressivas. Quando o encontrei bebendo sozinho no quarto que ele e minha mãe ocupavam; e que normalmente costuma manter intocável, como uma espécie de santuário, desde que ela morreu; nós conversamos longamente e acabou me pedindo para fazer-lhe companhia, até conseguir pegar no sono. A essa hora, já imaginava que dona Leonora tivesse levado minha mensagem até você; mas infelizmente não podia abandonar meu pai, num momento tão difícil.
O psicólogo dessa vez não resistiu ao deliberado sorriso sarcástico que delineou entre os lábios, fitando-a de cima a baixo, como se não conseguisse mais aplacar a indignação que ameaçava fluir por suas palavras.
- Vejo agora o quanto o teatro poderá lucrar, tendo você nos palcos. Mentir é uma arte sofisticada, digna das melhores atrizes.
- Por que está falando comigo, desse jeito ?
- Não deveria se sentir ofendida; é um elogio ! Só que gosto de apreciar uma boa interpretação, apenas como entretenimento. Nunca cogitei levar para cama, uma personagem, por mais irresistível que ele fosse. Gosto de fazer sexo com mulheres reais. Delírios, geralmente são muito perigosos.
- Quer parar de me olhar e falar como se estivesse diante de suas pacientes histéricas ?... Estou abrindo meu coração e me desculpando com você. O que mais quer que eu faça ?
- Que pare de se comportar como amante de seu próprio pai ! - disparou Victor, alteando agressivamente o tom de sua voz.
Ângela sentiu um calafrio involuntário percorrer-lhe o corpo, quase desequilibrando a bandeja que apoiou sobre o colo. Colocando-a para o lado, levantou-se, caminhou até a janela, expondo a bela fisionomia tomada por indisfarçável amargura, diante dos primeiros raios de sol que irrompiam pela vidraça, iluminando parcialmente o quarto, após uma sequencia de dias chuvosos.
- Já me condenou no tribunal imutável de seus valores. Qualquer coisa que eu diga, não irá satisfazê-lo; apenas aumentar a raiva e a sensação de estar sendo enganado. Quem tentou jogá-lo contra mim ?
- Ninguém me contou nada. Eu vi com meus próprios olhos. Deveria certificar-se de ter a porta fechada, antes de se entregar a sua promiscuidade. Pare de mentir ! Não estou aqui para julgar você. Mas preciso entender o que está acontecendo entre nós.
- É muito simples; eu amo você. E isto é tão certo para mim, quanto o ar que eu respiro. E é o que deveria também importar para você, se de fato, me ama. Qualquer outra coisa que possa ainda estar existindo, pertence a minha história com meu pai; anterior a qualquer chance de um sentimento redentor, voltar a gritar dentro de mim, alardeando uma nova possibilidade de ser feliz.
- Então você admite ?
- Admitir o que ?
- Que se deixou usar pela mente doentia daquele homem. Quando percebeu que jamais superaria o luto pela esposa, passou a colocá-la de maneira quase alucinógena, no lugar dela.
- Não é verdade. Está distorcendo os fatos.
- Mas é claro que foi seduzida. Ele aproveitou da sua carência traumática, após a violência sexual que sofreu, para sugestioná-la emocionalmente, induzindo-a a se isolar do mundo, pertencendo irrestritamente aos seus desejos; tratando as pessoas lá fora, como inimigos em potencial; prontas a desconstruir todo paradisíaco pacto de confiança que reinava entre vocês. Um pacto inumano, como se fossem divindades, acima de qualquer tabu, acima do bem e do mal.
- Falou o nobre psicólogo, apoiando-se sempre nas ruínas de inúmeras teorias, que se atrevem a explicar, mas não a equacionar, os insolúveis dilemas que a vida nos reserva, sem perguntar se estamos preparados para assumir as consequências. - inflama-se ironicamente, Ângela.
- Minha querida, você é uma vítima de toda a paranoia onde seu pai viveu mergulhado nos últimos anos. Você foi sugestionada a viver neste seguro e confortável ambiente de perversidade melancólica onde se encontram.
Ângela reaproximando-se da cama, ajoelha bem diante de seus olhos, fitando-o com sinceridade.
- Pare de tratá-lo como uma aberração moral. Meu pai foi tão vítima como eu, de toda a tragédia que vivemos e sofremos juntos. Ninguém fez a minha cabeça. Quando transamos pela primeira vez, eu sabia exatamente onde eu queria estar e com quem. Não fui abusada, mas sim despertada; para uma nova possibilidade de encontrar o prazer e a paz que sempre sonhei, ainda que tivesse a certeza de não estar apaixonada. E de que talvez, jamais voltasse a sentir algo parecido por homem nenhum... até conhecer você !
Victor até então convicto de seus argumentos, por um instante hesitou de se contrapor, preferindo ouvi-la, diante da autenticidade tão visceral, que emanava daquele depoimento de vida.
- Entenda de uma vez por todas: sempre amei estar com meu pai. O sexo para mim, tem sido apenas mas um desses momentos. Em que posso acolhê-lo, confortá-lo e permitir que gozemos juntos da mais extraordinária experiência de amor incondicional, de entrega absoluta, entre um pai e sua filha. Pode chamar isso de situação edipiana doentia; complexo de Elektra; e o que mais puder se lembrar, para nos demonizar cientificamente. Mas o que nunca vai poder mudar, é a certeza do que estou dizendo agora. Sabia o que estava fazendo. Não foi ele que me procurou, na primeira noite que passamos juntos. Eu o procurei. Nós bebemos juntos naquela noite e acabei precipitando aquele encontro; fazendo concretizar o que seus olhos sempre clamavam, mas seus lábios temiam verbalizar, por medo de me perder. E estava tudo em paz, tanto na minha consciência, como no meu coração; até a vida me surpreender mais uma vez, colocando um estranho no meu caminho. Um estranho, que em tão pouco tempo, me vez rever uma série de escolhas, confrontando-me com uma decisão, que não dependia de mim, assumir sozinha.
- Que decisão ?
- Continuar aqui, fiel a imagem protetora de meu pai; ou contar a ele, que mesmo continuando a amá-lo, meu tempo nesta casa acabou; e ter a coragem de seguir em frente, partindo ao lado do homem, por quem me sinto verdadeiramente apaixonada. Você ! - declara-se Ângela, tendo os olhos marejados pela emoção. Victor acaricia-lhe o rosto, enquanto ela simetricamente inclina uma das faces, deitando-a no aconchego de seus dedos; fechando as pálpebras, suspirando aliviada, num impulsivo gesto de carência.
- Conhecê-la, é viver um completo enigma, sabia ? A gente não sabe se foge dele, abandonando-o antes que nos destrua; ou se entrega a ele, na tentativa de decifrá-lo obcecadamente, custe o que custar.
- É assim que vê as mulheres, que passaram pela sua vida ?
- E o que sabe sobre minha vida ?
- Talvez mais do que imagine. Penso ver um homem que se preserva muito, receando deixar-se dominar pela emoção. Aliás o medo, é um sentimento que conhece bem. Por isso procura controlá-lo, evitando decisões precipitadas em sua vida amorosa. Enfim , um homem de muitas mulheres, mas sempre arredio em relação ao amor. Pela marca no seu dedo, percebi que tirou a aliança há pouco tempo. Ela morreu ?
- O que posso lhe dizer é que tive uma pessoa muito importante em minha vida; mas prefiro não falar sobre o meu passado. O que posso garantir, é que meu coração está aqui, livre de todo e qualquer receio de se entregar a você. Isso não é o bastante ?
- Claro que sim, meu querido. Podemos recomeçar juntos. - concorda Ângela, erguendo-se para abraçá-lo.
Victor acolhendo-a entre os braços, fala mansamente ao seu ouvido.
- Mas temos que tomar cuidado com seu pai.
- Está enganado; ele só quer o meu bem.
- Exatamente por isso. Ele não imagina a sua felicidade, longe desse lugar e vai fazer de tudo, para mantê-la perto dele.
- Papai não faria mal a ninguém !
- Sabe que não é verdade, Ângela. Foi um homem que se excedeu na clandestinidade de vários vícios secretos, que quase o destruíram. Quem era seu pai, quando não estava perto de você ? Ninguém sabe; talvez nem mesmo ele ! E deste outro homem, que precisamos nos preservar.
Recuando daquele abraço, a jovem parece traduzir no olhar uma sensata cumplicidade, frente as ponderações de Victor.
- Então precisamos agir rápido. Não quero fazê-lo sofrer; mas quero estar do seu lado, quando cheger a hora de partir.
- As chuvas deram uma trégua. Se o tempo continuar assim, provavelmente amanhã, estarei em condições de seguir viagem, embora ainda não me sinta pronto para dirigir.
- Quanto a isso não tem problema. Podemos viajar no meu carro; partindo bem cedo. Deixe que eu cuido de tudo. - garante Ângela, revelando uma expressão contagiante em seus olhos. - Agora, que tal tomarmos este café da manhã juntos ? Tanta expectativa, acabou aguçando meu apetite. Por enquanto, vamos saciar apenas o gastronômico, ok ? - complementou, com o leviano bom humor de sempre.
A cumplicidade de uma calorosa e sonora risada, invadiu todo o ambiente, legitimando o tom da descontraída conversa que se seguiria. Ângela e Victor compartilhavam daquela interação tão comum aos casais apaixonados; quando um parece adivinhar as intenções do outro e qualquer revelação sobre temas do passado ou planos para o futuro, ficam impregnados de uma deliciosa sensação de dèja vu, como se aquela história já pertencesse às memórias do casal. Ângela comentou sobre marcações e observações feitas por ela, em livros que encontrou na sua bagagem que versavam entre outras coisas, sobre a prática da hipnose. Victor admitiu ter trabalhado com o método, apesar de preferir adotar a livre associação de idéias, sem desviar muito do enfoque psicanalítico, com seus clientes. Ela confessou sentir medo de ser hipnotizada indagando se o fato do poder estar investido todo na figura do terapeuta, não seria capaz de ameaçar a integridade da pessoa sob tratamento. O psicólogo explicou-lhe a diferença entre a hipnose imperativa, esta sim, possível de causar danos, por induzir a manipulação dos atos de alguém; e a hipnose consensual, utilizada amplamente por profissionais da área médica. Depois falaram abertamente sobre acontecimentos significativos de suas vidas familiares; incluindo um ou outro evasivo comentário sobre seus relacionamentos amorosos; quando Victor admitiu nunca ter se casado oficialmente. A marca da aliança que vira em seu dedo, era apenas um simbólico código de fidelidade, entre pessoas que se queriam bem. Era uma mulher bem mais velha, que o conheceu numa difícil e errante etapa de sua juventude, ajudando-o a encontrar um rumo certo para seus objetivos; a construir tudo que hoje em dia, ele se orgulhava de ser. E esta generosa mulher, por um inexplicável desígnio do destino, não mais fazia parte de sua vida, tendo falecido recentemente.
As horas foram passando e antes que se dessem conta, já eram quase duas da tarde; quando a governanta batera a porta com certa veemência, após procurar por Ângela, previamente em seu quarto. A jovem respondeu de imediato, garantindo que já estaria indo almoçar com o pai. Pensou em convidar Victor para se juntar a eles, mas logo desistiu da ideia, considerando que a atmosfera emocional, não seria das mais cordiais. Combinou então, de que Victor deveria alegar alguma indisposição, justificando estrategicamente sua ausência. Depois, ela pediria a dona Leonora, para trazer-lhe a refeição no quarto. Ele concordou prontamente e despediram-se, depois de um rápido, porém não menos entusiástico beijo. Ângela disse que passaria a tarde assessorando o pai, durante a instalação de alguns novos programas no computador; solicitando a Victor, que tão logo anoitecesse, não deixasse de visitá-la em seu quarto; entregando-lhe uma cópia da chave, ao segurar carinhosamente suas mãos. Victor assentiu, assegurando que aproveitaria o horário da tarde para verificar sua mala, deixando-a pronta, para quando partissem logo pela manhã.
Ao sair apressadamente, diante da batida insistente de dona Leonora, Ângela deparou-se com o olhar nada amistoso da governanta, que olhando por sobre o ombro da jovem, buscou identificar a figura do psicólogo, que lhe sorria displicentemente, acomodando-se na cama; pouco antes de Ângela fechar a porta.
- Espero que saiba o que está fazendo ! - advertiu a velha senhora, tendo o silêncio indiferente de Ângela, como resposta.
Tudo saía como planejado. Ângela passou o restante da tarde em companhia do pai; dona Leonora pouco tempo depois, adentrou ao quarto, bem mais reservada, atendo-se a servir a refeição de Victor, sem pronunciar qualquer comentário sobre a perigosa relação com sua inconsequente protegida. Após a saída da governanta, o psicólogo verificou alguns documentos particulares, bem como uma substanciosa quantia em dinheiro, escondida no fundo falso de sua mala, juntamente com outro utensílio de caráter confidencial. Ansioso demais para focar a atenção na leitura daquele livro, pertencente ao acervo de Leminscky, que certamente não concluiria; resolveu deitar-se e tentar relaxar, programando o despertador do celular para dali a algumas horas. Mas o descanso um tanto forçado, só lhe rendeu um sono agitado, inspirado por insólitas imagens oníricas.
No sonho angustiante, Victor se via em outro lugar, numa espécie de frigorífico, onde um homem de estatura mediana e físico bem definido, trajava unicamente um grande avental branco sobre a pele, onde realçava-se extensas manchas de sangue; aproximando-se dele com um metálico instrumento, semelhante um cutelo. Victor se via preso a um leito muito estreito, semelhante a uma maca de hospital; tendo os pés e as mãos atadas por cordas grossas, como aquelas utilizadas em caminhões para transporte de cargas muito pesadas. O estranho de feições disformes, como uma grotesca figura surreal de Salvador Dalí, ostentava uma cinzenta máscara cirúrgica; e sem dizer palavra, começou a executar um sórdido bailado de golpeamentos precisos e impiedosos, desmembrando em poucos movimentos, partes inteiras de seu corpo. O sangue esguichava parecendo aglutinar-se numa uníssona forma esférica, que desafiando a gravidade, levitava para o teto escuro do quarto, assumindo o formato lunar de uma bola de sangue. Antes de sentir o último golpe desferido em direção ao tórax, teve a nítida visão de que a esfera lunar sanguínea assumia as feições do semblante de Ângela. E então acordou.
Assim que abriu os olhos ele vivenciou a desconfortável sensação de que não estivera sozinho naquele quarto, mesmo enquanto o pesadelo o absorvia pelo convincente apelo de imagens tão surreais. Percorreu o olhar por toda a dimensão daquele espaço, mas no entanto, não encontrara qualquer evidência real, de que alguém o espreitara, durante o sono. Preferiu atribuir o pressentimento de natureza paranoica, ao nível de ansiedade em razão do rumo incerto, que sua vida estava por assumir. O relógio do celular acionara-se naquele instante, quando visualizou o horário das dezenove e trinta horas. Pegou a chave no bolso da camisa, recordando-se das instruções de Ângela. Esboçou um sorriso vaidoso, ao imaginar-se na atmosfera excitante e proibida de uma primeira e definitiva noite de desejo apaixonado, naquela casa. Mas resolveu não se deixar levar pela sequencia de devaneios, levantando-se com objetividade; uma vez que Ângela, já devia esperá-lo ansiosamente.
Seguindo pelo corredor vazio e silencioso, parcialmente iluminado, Victor identifica a porta do quarto, posicionando a chave e girando-a cuidadosamente na fechadura, enquanto empurra a maçaneta sem fazer barulho. O ambiente era dominado por uma singela penumbra advinda da solitária luminária, situada na cabeceira da cama. Ele caminhou devagar, acomodando-se no colchão, ao mesmo tempo em que estendia a mão para puxar a coberta, que parecia ocultar praticamente, todo o corpo de sua amada. Ao descer o edredom, surpreendeu-se ao se deparar com o volume de travesseiros previamente distribuídos, passando-se pelo corpo de Ângela. Nesse instante, antes que sequer levanta-se, sentiu o pescoço ser enlaçado às suas costas, pela pressão de um violento abraço, em atitude de estrangulamento, forçando-o a ficar de pé, andando para trás, como se tentasse equilibrar o peso corporal, a fim de não ser asfixiado. A luz do quarto se acende e ele observa imediatamente, a presença de Ângela. Sentado numa pequena cadeira, ela tinha os braços estendidos para trás, imobilizados por cordas que amarravam seus pulsos. Os lábios, pressionados por um pano espesso, na intenção de amordaçá-la, impediam-na de denunciar qualquer sinal de alerta, ao esperado amante. Em pé ao seu lado, uma figura pouco conhecida por Victor, mas que pressumia ser a do caseiro; que ajudou a resgatá-lo do acidente.
- Calma, pare de se mexer ! Eu vou soltá-lo. Só queria me certificar de que não teria alguma reação, da qual iria se arrepender. - declarou a voz um tanto ofegante de Leminscky, diante das tentativas de Victor para se libertar.
Após soltá-lo, o jornalista o encarou, transfigurado por um ódio contido, monitorado pela premeditada calma aparente, de quem costuma executar sua vingança, sem se deixar entorpecer pela emoção.
- Quer dizer que você pensou que poderia afastá-la de mim ?... Seduzi-la com sua lábia pervertida de terapeuta, fazendo-se passar pelos mesmos "príncipes encantados", que nunca a fizeram feliz ? Sim, porque depois que realizar todas as suas fantasias sexuais mais imundas; simplesmente vai abandoná-la, como se minha filha não passasse de mais uma "putinha", na sua vida de playboy, não é mesmo ? - acusou o pai indignado, desferindo um ágil e brutal soco no rosto, antes que Victor fosse capaz de dizer qualquer coisa.
Ângela começou a se debater na cadeira, forçando os pulsos para se soltar; emitindo grunhidos desesperados, como se implorasse ao pai, para que não continuasse a agredi-lo.
Victor, caído no chão, sentindo um filete úmido e quente de sangue, escorrer pelo canto do lábio, olhou de soslaio, pensando em revidar assim que o agressor se aproximasse. No entanto, o desesperado esforço de Ângela, também aguçou paralelamente sua atenção, para o caseiro que a vigiava; e que ao notar estar sendo observado por ele, recuou a aba da jaqueta, expondo o revólver que trazia preso à cintura. Leminscky acompanhou o olhar do oponente, para seu empregado, reparando na hesitação de seus movimentos e acrescentou: - Eu sei que você quer reagir. Posso sentir a raiva aumentando seu batimento cardíaco. Não se deixe intimidar pela arma. Donato; não se atreva a usá-la ! Vou mostrar para minha filha, o covarde que ela escolheu para protegê-la.
Tão logo o psicólogo ficou de pé, o jornalista investiu novamente, cerrando o punho direito, para desferi-lo com toda a força, na altura do diafragma de Victor; ao mesmo tempo em que na sequencia, erguia velozmente o braço esquerdo, nocauteando-o, na altura da têmpora. Vitimado por ambos os golpes, acabou tombando o corpo por sobre a cômoda, derrubando vários objetos que estavam sobre ela. Ainda assim, manteve o raciocínio rápido o suficiente, para comentar sarcasticamente, a brutalidade que sofria.
- Isso tudo é porque ela me contou, que trepa com você por pena ? Que está cansada de dar prazer a um pobre coitado, que precisa dos favores sexuais da própria filha, para ainda se sentir homem ?
- Seu desgraçado, eu mato você !
Antes que o agressor o alcançasse, Victor gira o corpo por sobre a cômoda, ficando de frente para ele, quando simultaneamente apoiando-se nos braços, consegue o impulso necessário para erguer e projetar a perna esquerda, acertando-lhe na região toráxica; arremessando de imediato, o jornalista contra a parede, perto da cama.
Leminscky ao sentir o impacto do golpe, tanto no peito, quanto na colisão de suas costas à parede, arqueia instintivamente o corpo, experimentando uma súbita dificuldade para respirar, pouco antes de um acesso de tosse, impossibilitando-o momentaneamente de reagir. Victor direciona-se então, sem hesitar, suspendendo-o pelo colarinho da camisa, para encostá-lo mais uma vez violentamente contra a parede, colocando uma de suas mãos em concha em torno de seu pescoço, pressionando como se almejasse esmagar sua traquéia.
- Para mim chega, ouviu bem ? Mande aquele seu capanga, libertar a minha mulher. Caso contrário, eu acabo com a sua raça. - ameaça Victor, demonstrando determinação em seu propósito.
Adriano Leminscky, sente-se pela primeira vez em desvantagem; cerrando os lábios, trêmulos de fúria, recusando-se a dar a ordem, ao mesmo tempo em que se ouve numa breve e tensa quietude circunstancial, o estalido de uma arma, sendo engatilhada. Victor volta o rosto em direção ao caseiro, fitando-o com inalterada determinação, apesar de perceber estar na mira do atirador.
Nesse instante, a porta do quarto é aberta abruptamente; e ao entrar, dona Leonora emite um grito estarrecido, diante da trágica cena que poderia testemunhar. Donato tem sua atenção voltada para ela; e aturdido, pede que saia imediatamente dali. Este lapso de concentração, é suficiente para que Ângela levante com esforçada agilidade, o peso da cadeira, como próprio corpo, arremessando-se literalmente sobre o caseiro, a fim de desviar-lhe o foco da pontaria. Numa fração de segundos antes que ambos tombassem ao chão, o revólver é involuntariamente disparado. Agora não se ouve mais nenhum outro grito; apenas o silêncio atônito da velha senhora que sente uma estranha ardência percorrer-lhe o ombro esquerdo, observando um filete de sangue, escorrer languidamente pelo braço. Ela encosta na porta escancarada e sentindo uma súbita vertigem, começa a deslizar lentamente para o chão.
Ao ver que atingira dona Leonora acidentalmente, o caseiro recolhe a arma, guardando-a novamente à cintura. Victor empurra Adriano, semi inconsciente, para a cama, adiantando-se ao encontro de Ângela, ajudando-a a se libertar.
- Meu Deus, o que foi que eu fiz, patrão ?! Dona Leonora, fala comigo; não vou deixar que nada de mal aconteça ! Não feche os olhos; fica com a gente ! - implora Donato, arrancando a camisa, para envolvê-la em torno do ombro da governanta.
Ao tirar a mordaça, desamarrando-a; a jovem abraça Victor, chorando copiosamente.
A esta altura, o jornalista já começa a se sentir melhor; observando a respiração normalizar, os espasmos musculares cessarem, embora a traquéia, ainda estivesse bem dolorida. Ergueu os olhos para dona Leonora, quase desfalecida, sendo acudida por Donato. Nesse momento, ajoelha-se sobre o colchão, com uma expressão de cansaço, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo; e passando as mãos ao longo do semblante, encharcado pela transpiração, tentou pronunciar-se, tendo a voz assumido a entonação de um sussurro, devido a seu impactante lamento.
- Viu o que fez conosco ? Salvamos você e o que nos deu em troca ? Discórdia, agonia, loucura ... Olha o que me obrigou a fazer com minha própria filha ! Nunca havia levantado a mão para ela; nem naqueles momentos de vida, em que estive mais fora de mim. E me levou a tratá-la como uma prisioneira, para que pudesse salvá-la de um destino bem mais terrível, permanecendo ao seu lado.
- Patrão, acho que a bala passou de raspão. Mas ela está muito fraquinha, precisamos levá-la ao hospital.
- Posso cuidar dela, Donato. - interveio Ângela. - O desmaio deve ter sido mais em função do susto, do que pela gravidade do ferimento. Procure deitá-la aqui na cama, até eu voltar com o estojo de primeiros socorros.
- Filha, me perdoa; por favor ! Eu não queria que fosse assim.Eu juro !
Ângela olha para o pai, totalmente desiludida.
- Não se preocupe, meu pai. Se o preço para não nos deixar cair em desgraça, é o de permanecer aqui, você venceu ! Seria penoso demais para mim; levar esta situação às últimas consequências. Mas tão logo, o homem por quem estou verdadeiramente apaixonada, esteja longe do seu alcance; nós vamos ter uma longa e definitiva conversa. Agora, preciso cuidar da única pessoa, que não merecia ter sido vítima do seu ódio.
- Posso ajudá-la de alguma forma ? - indaga Victor, acompanhando atentamente a movimentação do caseiro, ao conduzir dona Leonora até a cama.
- Volte para o quarto e me espere lá, até terminar o procedimento. Não acredito que papai tenha coragem de voltar a hostilizá-lo, depois do que aconteceu. - aconselha Ângela, baixando o tom de voz.
- Não vou deixá-la sozinha ! - enfatizou Victor, segurando-a pelo braço.
- Por favor; ele não irá me fazer mal. - contemporiza Ângela. - O alvo de tudo isso era você. Saberá me ouvir, desde que esteja seguro de que não irei abandoná-lo.
Meneando a cabeça positivamente, Victor faz um gesto de carinho nos cabelos dela, encaminhando-se em direção à porta.
O jornalista, já de pé, acompanhava a conversa entre ambos, ainda guardando na fisionomia, os traços de sua alteração emocional; porém contenta-se em proferir uma última advertência.
- Amanhã cedo, quero você longe desta casa ! Donato poderá levá-lo até a rodoviária. Em total segurança, eu prometo. - acrescenta, direcionando o olhar para filha, a fim de convencê-la de sua sinceridade.
Victor limita-se a fitá-lo impassível, evitando emitir qualquer comentário, que reascendesse aquela incendiária e incontornável rivalidade; partindo silenciosamente pelo corredor.
Quando os três ficaram sozinhos no aposento, Ângela iniciou a limpeza do ferimento, apressando-se em preparar o curativo, observando que dona Leonora ia aos poucos recobrando os sentidos. A velha senhora ainda preservava no olhar, a mesma expressão atônita, anestesiada pelo estranho torpor, que o estresse do medo lhe causara.
Adriano, sentado numa antiga poltrona, lateral à cama, mais ao fundo do quarto, não esboçava qualquer reação, vivenciando solitariamente sua particular angústia.
Ao concluir o procedimento de enfermagem; Ângela estendeu a mão discretamente para Donato, voltando o olhar em direção a arma presa em sua cintura, para em seguida fitá-lo de forma imperativa, como se o responsabilizasse diretamente, pela iminência de uma tragédia familiar. Momentaneamente indeciso, o caseiro buscou na fisionomia do jornalista, algum sinal de autorização, uma vez que o revólver pertencia a ele; mas não ousou interromper a introspecção melancólica que parecia dominar Leminscky; preferindo então, retirar o perigoso objeto, visivelmente constrangido, deixando-o sobre a guarda de Ângela. Em seguida, ela pediu ao pai e a Donato, que se retirassem; e abraçando carinhosamente a governanta, ainda abalada emocionalmente, alegou que ela precisaria descansar e que dormiriam juntas aquela noite, no seu quarto. Donato não demorou a se ausentar, embora Adriano resistisse a ideia de ir embora, apesar da filha insistir novamente.
- Está bem, eu vou deixá-las em paz. Mas antes me responda uma coisa: Por que ameaçar uma vida tão calma e feliz, trocando-a pelo sabor incerto e fatalmente amargo, de uma aventura ? Porque sabemos, como essa idílica história romantica vai terminar...
Procurando manter a serenidade, ela tentou escolher as palavras, para não ferir com a honestidade de seus sentimentos, a instável autoestima de seu pai.
- De certa forma, eu não lhe tiro a razão. Nossa vida tem sido delirantemente calma. mas estávamos nos anestesiando, papai. Tentando compensar um no outro, carências das quais jamais nos libertamos. Esta calma a que se refere, nunca combinou com minha ideia de felicidade. Amo você como pai, como homem; mas de uma forma diferente. Nem sempre quebrar tabus, significa alcançar a plenitude. A cumplicidade sexual não coincide necessariamente com o arrebatamento amoroso, que só a paixão nos oferece. E apaixonar-se tem a ver com risco; possibilidade de perder, conquista extasiante ao se ganhar. Falta-nos o prazer do desconhecido, pai ! Até para decidirmos o que fala mais alto em nosso coração, precisamos abandonar o pânico de revisitar o mundo; e ver o que ele reserva, de bom ou de mal, sem que isso nos destrua.
Ângela sentiu um toque suave sobre a mão direita, segurando-a firmemente e voltou-se para dona Leonora, que parecia querer comunicar com seu gesto, a aprovação por cada palavra que dissera. Leminscky tinha o semblante abatido, sensibilizado pelo maduro discernimento da filha, porém sentia-se incapaz naquele momento, de se descobrir forte o suficiente, para questionar sua solitária ilha de valores egocêntricos. Levantou-se e abrindo mão de qualquer argumento, ao aproximar-se da cama, não se furtou de arriscar uma menção de afeto, inclinando-se vagarosamente, para beijar a testa de sua filha.
- Durmam bem, vocês duas. Amanhã, teremos um longo dia pela frente. - despediu-se, atravessando o quarto, a carregar sobre os ombros, o peso da derrota paterna.
Horas depois, a casa repousava no tranquilo esquecimento da madrugada. Ângela verificou pacientemente, quando dona Leonora pareceu mergulhar em sono profundo. Saindo da cama cuidadosamente, vestiu a camisola branca sobre a lingerie de mesma tonalidade, meneando os cabelos caprichosamente, enquanto caminhava até a porta, abrindo-a bem devagar.
Atendendo a insistente e discreta batida em sua porta, Victor não demorou a abri-la, permitindo a entrada de uma visita tão esperada.
- Desculpe pela demora, meu amor. Mas precisava me certificar de que nada conspiraria contra nós, desta vez.
- Posso confiar, de que fará tudo para encontrar comigo ?
- Claro que sim. A história com meu pai, é um capítulo encerrado na minha vida.
Fitando-o maliciosamente, Ângela desceu levemente a taça do sutiã, a procura de um pequeno souvenir, para mostrar a ele.
- Este é meu celular. Guarde o meu número e deixe o seu gravado nele, junto com seu e-mail. Em breve, terá notícias minhas. Prometo não retardar demais nosso reencontro.
- E o que será de mim, até lá ? - indagou Victor em tom galanteador.
Ângela retribuiu sensualmente o gesto, passando a língua insinuantemente por entre os lábios, antes de esboçar um atrevido sorriso de menina.
- Poderá colecionar na lembrança, cada curva do meu corpo, cada instante de prazer, depois dessa noite de despedida.
Olhando-o dentro dos olhos, abriu lentamente a camisola, deixando-a deslizar até o chão. Em seguida, retirou o sutiã languidamente, jogando-o em direção a cama, pouco antes de ladear os braços por sobre os ombros de Victor, entregando-se ao abraço ansioso; buscando avidamente, reviver o sabor daquele beijo.
Pela manhã, o brilho solar e o céu azulado, limpo de nuvens, já anunciavam um permanente reinado, após a tumultuada temporada chuvosa.
Ângela já habitava a clausura voluntária de seu próprio quarto, contemplando pela janela, sem descuidar-se de manter o rosto parcialmente oculto pela fresta da cortina; os derradeiros preparativos para partida de Victor. O caseiro Donato suspendia o porta malas, acomodando a bagagem do conformado psicólogo, enquanto este trocava algumas palavras, agora de maneira bem mais civilizada, com o dono da propriedade, que não conseguia dissimular um indisfarçável ar de superioridade e alívio, por ver aquele indesejável hóspede, prestes a sair definitivamente, de sua vida familiar.
Victor levantou a cabeça em direção a lateral da casa, que dava para garagem, tentando identificar a fisionomia da jovem, por trás de alguma das janelas. No segundo quarto, avistou o que procurava, acenando para ela demoradamente, a ignorar a reação do jornalista, que permanecia impassível. Ângela retribuiu num gesto tímido, recuando logo em seguida, quando fechou a cortina. Se desejavam passar a estratégica impressão de uma amarga despedida de casal; os dois possuiam uma invejável improvisação cênica.
Donato abriu a porta do carro aguardando formalmente a entrada do psicólogo; que após a silenciosa despedida, caminhou até o veículo, acomodando-se no banco do carona, evitando encarar novamente, o semblante austero de Leminscky. O caseiro assumiu o volante, meneando a cabeça para o patrão, em sinal de obediente cumplicidade, antes de dar a partida, distanciando-se aos poucos do casarão.
O restante do dia transcorrera numa apática ausência de acontecimentos, contrastando com a incendiária tensão da noite anterior. Adriano e Ângela, mal trocaram palavras, isolando-se pelos cantos da casa. O pai tomara o café da manhã sozinho, embora ela tivesse assumido a cozinha, poupando a governanta, ainda convalescente, de um cansaço desnecessário; preparando algo para as duas, que depois levaria até seu quarto. Durante o almoço, dona Leonora, demonstrando estar mais disposta, foi se juntar a eles em torno da grande mesa da sala de jantar. No entanto, uma atmosfera de evidente animosidade ainda imperava entre pai e filha; na verdade mais por parte de Ângela, que monossílabicamente respondia a uma ou outra observação casual proferida por Adriano; resistindo a retomar o entrosamento tão rotineiramente afetuoso, que sempre prevaleceu entre eles.
Ao final da tarde, a crepuscular luminosidade já se despedia na paisagem montanhosa, quando Adriano, sentindo falta da parceria de sua filha, quando esta colaborava frequentemente com suas pesquisas jornalísticas pela internet, sabendo lidar como ninguém, em relação as nuances de funcionamento de seu velho computador; resolveu então, assumir a iniciativa de desfazer aquele frio distanciamento, que prometia se consolidar durante a convivência. Quando se direcionou até o corredor, percebeu mesmo com a porta daquele quarto fechada, um feixe de luz artificial, projetando-se por debaixo dela. Era o quarto de sua falecida mulher, do qual Ângela também tinha uma chave, visitando-o tanto nos momentos em que sentia saudades da figura materna, como quando programavam seus encontros noturnos.
- Estou surpreso de vê-la por aqui. - ressaltou prontamente, sem bater à porta, enquanto adentrava ao quarto. - Costumava ficar horas sozinha, toda vez que estava em conflito e procurava um lugar calmo para meditar, como se buscasse uma forma de sintonia espiritual com sua mãe. Admiro e respeito este lado ritualístico, com que preserva a memória dela, dentro do seu coração.
Ângela, acomodada em posição de lótus sobre a cama, remexia em específicos pertences de sua mãe, retirando-os de algumas caixas de papelão; como se escolhesse o que mais lhe agradava, separando-os a um canto do colchão. Durante a fala do pai, pareceu nem lhe dar atenção, continuando sua atividade sem a menor vontade de encará-lo nos olhos. Não se abatendo por sua aparente indiferença, ele prosseguiu, sem qualquer constrangimento.
- Tudo bem; se o preço para voltarmos a nos falar é o de instituirmos a hora da verdade, vamos lá, então ! Dona Leonora já havia me comentado sobre o clima de sedução, que imperava entre vocês. Achei aquilo a princípio até normal, já que você é tão jovem e como toda mulher nessa idade, ainda suscetível a encantamentos ardentes, tão intensos quanto pueris; quando finalmente a "ficha" da realidade acaba caindo. Apesar de saber de todas estas circunstâncias, não vou negar que fiquei enciumado. Sim, fiquei; embora não me sentisse ameaçado. Mas quando soube de tudo que contou para ele sobre nós, mais uma vez através da inestimável fidelidade de minha governanta, cujo papel nessa casa foi acima de tudo, zelar por você e pela nossa paz; aí sim, me senti apunhalado pelas costas. E sabe por que ? Por não ter tido a coragem de dizer o que de fato se passava no seu coração, olhando bem no fundo dos meus olhos. Se houve um motivo tão forte para negligenciar todos os momentos tão puros, intensos e da mais confiável certeza de um amor pleno entre nós, é porque a falha deveria ser minha. Reconheço que às vezes, por este meu lado introspectivo, acabo me isolando dentro de mim; fechando os olhos sem querer, às mais sutis necessidades de quem está a meu lado. Com sua mãe, era a mesma coisa. Mas prometo que posso mudar; fazer de tudo ao meu alcance para continuar a satisfazê-la; para continuar a torná-la feliz.
- Chega, pai ! Não quero ouvir mais nada. - enfatiza Ângela lacônicamente, alterando o tom de voz.
A surpresa do jornalista, faz com que se cale imediatamente, sem saber como se comportar diante da surpreendente reação de Ângela.
- Se vamos jogar com a verdade, pondo as cartas na mesa, que tal começarmos por essa fixação doentia, capaz de projetar sobre outra mulher, sem respeitar seus sentimentos, suas vontades, o espectro amoroso de algo que jamais poderá continuar existindo. Apesar da semelhança física com minha mãe, somos mulheres distintas, completamente diferentes. Será que nunca vai entender isso ? Tentando mudar uma triste realidade inevitável, jogou a sua vida durante um bom tempo, no fundo do poço. Eu já não o reconhecia mais. Era como se um duplo de você, o afastasse cada vez mais de mim e da própria sanidade. Tenho certeza de que viveu coisas, das quais jamais me contou, para não culpar-se pelo meu sofrimento; para não desconstruir aquela imagem heroica que durante tantos anos, foi o alicerce de nossa família.
- Por que está me dizendo uma coisa dessas ? Pensei que tinha me perdoado pelos erros que que cometi. Sabe muito bem, o esforço que fiz, para me reerguer da própria ruína.
- Mas nunca soube, pelo menos até agora, o preço que pagou para esconder de mim, coisas muito mais sérias. Efeitos colaterais muito mais monstruosos, do que aqueles provocados por auto piedade ou inconsequentes aventuras promíscuas.
- Ângela, você está me assustando. Do que diabo, está falando ? - exasperou-se, Adriano.
- Disso aqui, meu pai ! - Ângela resgata em meio aos objetos que havia previamente selecionado, uma portátil câmera de filmagem, como as usadas por documentaristas amadores. Ao acioná-la, exibe a imagem recém pausada, de uma mulher desesperada, implorando pela própria vida, gritando por um nome que Ângela desconhecia; e que provavelmente seria o do homem que se dispôs a realizar aquela macabra filmagem; onde a vítima indefesa, era alvo das investidas contundentes e brutais de um obstinado agressor, que a esfaqueava repetidas vezes, provavelmente instruído pelo mentor daquela gravação.
O jornalista olha estarrecido para aquela sequencia bárbara de imagens, fazendo menção de aproximar-se para arrancar o objeto das mãos da filha. Nesse instante, Ângela estica a mão rapidamente para debaixo do travesseiro, retirando o revólver, que não hesita em apontar, com absoluta segurança, na direção do pai. Era a própria arma de uso particular dele, que ela induziu o caseiro a devolver-lhe na noite anterior.
- Não tenho nada a ver com isto; o que pensa que está fazendo ?
- Apenas querendo esclarecer um velho fantasma do passado. Está vendo o dia da gravação, fixada no canto esquerdo da imagem ? Data de um ano atrás, na época em que finalmente me prometeu, nunca mais esconder as merdas que fazia por aí, nos antros que frequentava. Foi na mesma época que a sociedade carioca tomou conhecimento pela primeira vez daquela chacina hedionda, apelidada pela mídia em função daquele fenômeno raro que acontecia nos céus, naquela noite: "os crimes da lua de sangue".
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