PRÓLOGO
As pálpebras pareciam pesar como chumbo. As mãos tateavam aflitas pela superfície da cama, como se buscassem a presença de alguém ao se lado. Vanessa sentia a boca seca e a aspereza dos lábios, que tentava umedecer em vão com a ponta língua. Pensou ter sido drogada, pois os braços e pernas demoravam a reagir, conferindo-lhe uma sensação de dormência angustiante; ao mesmo tempo em que não se intimidando pela insólita situação, insistia por manter os olhos bem abertos, ainda que a visão turva, nebulosa, permitisse apenas vislumbrar espectros do ambiente. Esforçando-se, ergueu o corpo, sustentando o peso nos braços impaciente, que apesar de enfraquecidos, conseguiram impulsioná-la para trás, alteando assim, seu campo de visão, ao encostar na parede. O movimento sobre o colchão, provocou um som estridente, que rasgou o silêncio, causando-lhe um inesperado calafrio.
- Que lugar era aquele ? - indagou em pensamento. A incômoda e surreal sensação de névoa que inicialmente obscurecia seus olhos, começou a se dissipar, embora vivenciasse o desconfortável formigamento nas pernas. Agora conseguia identificar o local mais detalhadamente, superando o leve embaçamento visual, como se contemplasse uma pintura de Monet. Era um quarto grande, modestamente ocupado por uma mobília antiga, onde tanto o armário de roupas, a cômoda, a poltrona ou a velha cortina que escondia as janelas, adquiriam um aspecto solitariamente taciturno, sombrio desprovidos de qualquer cuidado humano. À direita, logo abaixo das janelas, destacava-se uma estranha mesa metálica, semelhante àquelas de instrumentação cirúrgica. Vanessa colocou as pernas para fora da cama e ensaiou levantar-se, sentindo uma breve vertigem, incapaz de impedí-la de se apoiar na parede, precisando acreditar na firmeza dos seus movimentos. A respiração ficou mais acelerada, quando desejou gritar pelo nome do namorado, mas hesitou, diante da possibilidade de ter o silêncio como resposta, obtendo a inaceitável certeza de que estaria sozinha. Adiantou os primeiros passos, percebendo a pálida luminosidade que invadia parcialmente o quarto, vindo do corredor. Esta lhe permitiu observar perplexa, o número de objetos cortantes dispostos naquela mesinha metálica. Eram facas de caça, de diferentes modelos e tamanhos, incluindo um cutelo, levemente untado por manchas ressecadas de sangue. Olhar incrédulo, Vanessa sentiu um arrepio instantâneo, estremecer-lhe o corpo. Fechou os olhos por um segundo, procurando controlar o stress e ao abrí-los, escolheu objetivamente uma das facas, portando-a convenientemente às costas, escondida por debaixo da blusa, presa à calça jeans.
Vanessa distanciou-se daquela sinistra exposição, tornando seus movimentos mais cautelosos, a fim de não chamar a atenção, alertando o desconhecido, de que recobrara precocemente os sentidos. Precisava transformar todo e qualquer resquício de desespero paralisante em indômita estratégia de fuga. O namorado, Marcos, tinha que estar vivo e ela o encontraria, nem que fosse a última coisa que fizesse. Avançou pelo estreito e longo corredor, apoiando-se pelas paredes, aumentando assim, a confiança na articulação das pernas. Esgueirava-se como um animal assustado, pressentindo o iminente araque do predador, quando avistou uma porta lateral entreaberta; convidando-a a conhecer o outro quarto, antes de prosseguir até a sala. A princípio passou direto por ela, mas parou pouco depois, meneando a cabeça inconformada, por admitir não desfazer da hipótese de que Marcos talvez estivesse ali, indefeso, precisando de sua ajuda. Permaneceu imóvel, na tentativa de ouvir alguma sonoridade, capaz de denunciar a presença de alguém. Nada ! Decidiu então, empurrar a porta cuidadosamente, rezando para que não fizesse barulho. Respirou aliviada, por sua prece ter sido atendida.
O recinto era bem mais precário de peças, do que aquele em que estava; identificando inicialmente, apenas o leito, o criado mudo e sobre ele, um volumoso abajur, cuja intensa luminosidade, cobria todo o corpo, estendido no envelhecido colchão. Enquanto se aproximava, a jovem experimentou um súbito frenesi, ao capturar em sua visão periférica a existência de um vulto à espreita. Tratava-se de um esguio cabideiro, ligeiramente afastado da cama, repleto de roupas masculinas amontoadas, cobertas por um largo terno escuro. Tão logo se recompôs, o olhar alcançou o corpo feminino, abandonado à própria nudez e mortalmente maculado pela crueldade humana. A figura daquela mulher permanecia estática, em meio a coloração esmaecida do lençol, completamente tinto de sangue. A cabeça decepada jazia ao lado do travesseiro, encharcado por uma aterradora viscosidade rubra, que escorria lânguidamente, desenhando trilhas de inimaginável sofrimento, que enfim, derramavam-se em lágrimas sanguíneas, sobre o frio assoalho de madeira. Vanessa levou as mãos à boca, calando um grito iminente. Ergueu os olhos para a parede vazia à sua frente, forçando-se a manter o discernimento e proceder a leitura da inusitada mensagem, provavelmente delineada pela caligrafia trêmula do assassino, instantes depois da execução ritualística. Era algum tipo de profecia; quem sabe um versículo do Antigo Testamento, que dizia: "O Sol se converterá em Trevas e a Lua em Sangue, antes que venha o grande e temível dia do Senhor".
Vanessa começou a recuar, olhando as coisas ao redor, focada na intenção de impedir que toda aquela loucura, a desestruturasse de vez. Embora ainda vivesse a experiência, de forma mais tênue, dos efeitos do torpor químico em seu organismo, sabia que a adrenalina do medo poderia ser o antídoto visceral, capaz de lhe dar a força necessária para vencer os próprios limites e escapar daquele lugar, a todo custo. Retirou a faca escondida às costas, empunhando-a com um propósito inabalável. Saiu às pressas do quarto, avançando em sua corrida até a sala, francamente invadida pela claridade artificial que vinha da varanda, rasgando o véu da noite. Lançou-se sofregamente até a porta, girando a maçaneta e esboçando um sorriso aflito, ao percebê-la destrancada, como se conspirasse a seu favor. Caminhando determinada, avistou ainda da varanda, uma vasta área de mata deserta, além de uma velha caminhonete, estacionada a considerável distância. Neste momento, a imagem do cutelo ensanguentado e da mulher morta, vieram á sua mente, passando a imaginar desesperadamente, se Marcos não estaria desfalecido, na carroceria daquele veículo. Olhou para a faca em sua mão mais uma vez, segurando-a com firmeza e quando decidiu lançar-se a uma corrida definitiva, sentiu alguém puxá-la novamente para casa, enlaçando-a vigorosamente pelos ombros e tapando sua boca. Ela tentava resistir à imobilização, conseguindo desajeitadamente girar a faca entre os dedos, impulsionando-a cegamente para trás. Desferiu um golpe impreciso, aleatório, ferindo de raspão a parte lateral da coxa, de quem a intimidava. Nesse instante, uma voz masculina sussurrou em tom imperativo, ao seu ouvido: - Larga essa faca, larga! Calma, sou eu, Marcos!
A última frase, pronunciada numa voz que lhe era tão familiar, assumiu um efeito terapêutico, afastando-a daquele transe de pânico; convencendo-a a largar a arma. Marcos então, decide soltá-la, apressando-se em fechar a porta, quando foi surpreendido por um novo e caloroso abraço, como se Vanessa procurasse exorcizar neste contato, toda a sua agonia.
- Meu Deus, você está vivo! Senti tanto a sua falta. Vamos embora daqui; me tira desse pesadelo.
Marcos corresponde ao gesto de carinho descansando-lhe a cabeça sobre o ombro, acariciando seus cabelos, num acolhimento paternal típico de homens maduros, que apreciam ser o porto seguro de mulheres mais jovens.
- Temos de ser cautelosos. Quando acordei na caçamba daquela caminhonete, nem acreditei que tinha sobrevivido. Não sabemos onde esse cara se escondeu ou mesmo que tipo de jogo mórbido, ele tem em mente. - enfatizou Marcos.
Vanessa abandonou a segurança daquele abraço, olhando apreensiva pra o ferimento em sua perna.
- Meu amor, eu acabei ferindo você! Me perdoe.
- Esquece isso. Foi superficial. Precisamos pensar em alguma coisa. - garante Marcos, abaixando-se cuidadosamente para pegar a faca.
- Marcos, ele deve ter se livrado do meu carro na saída do camping; logo depois de golpeá-lo e de ter me drogado. Aquele veículo lá fora, certamente é dele. Você entende um pouco de mecânica; poderia fazer uma ligação direta, sei lá! Estaríamos bem longe, quando ele voltasse.
- Pode ser perigoso ... - ponderou Marcos.
- Perigoso?! Você não tem idéia do que vi lá dentro. Ele é totalmente louco; um tipo de fanático religioso.
- Onde achou a faca?
- Existem várias no quarto onde me deixou desacordada.
- Vamos ficar aqui e nos armar contra ele. São dois contra um; e graças a Deus, não machucou você.
- Meu bem, não se trata de um criminoso comum. Naquele outro quarto, tem uma mulher morta, da maneira mais perversa que já vi. Era como se tivesse sido sacrificada. Ele chegou a escrever frase com sangue dela, na parede. Algo adiou que fizesse o mesmo comigo.
- O que ele escreveu?
- Uma coisa bizarra. Uma espécie de mensagem bíblica, falando de um sol mergulhado em trevas e uma lua banhada em sangue. - nesse instante, Vanessa hesita em continuar, vivenciando um insight repentino.
- Que dia é hoje?
- Acho que ... 27 de outubro. Por que?
- É a noite do eclipse. Daquele raro fenômeno.
- Como assim?
- A noite da Lua de Sangue! Não foi casual. Ele planejou e esperou por este dia. - concluiu Vanessa, tomada pela perplexidade.
Antes que Marcos tecesse algum comentário, a porta se abriu abruptamente, colidindo contra a parede. A jovem gritou aterrorizada, posicionando-se instintivamente às costas do namorado; observando quando este, empunhou a faca de forma ameaçadora, esticando o braço esquerdo para o lado, certificando-se da localização dela, para mantê-la fora do campo de visão do assassino.
O homem baixo, corpulento, tinha a pele muito clara e curiosamente avermelhada, como se tivesse acabado de fazer um cansativo esforço físico. Calvo, olhos amendoados, ostentava na mão direita, uma pesada enxada, tão suja de terra quanto o macacão desbotado, que trajava sobre a pele. dos lábios para o queijo proeminente, escorria um estranho e discreto filete amarelado, enquanto fixava o olhar ansioso, sobre o casal.
Marcos se aproxima, encarando-o fria e silenciosamente; consciente de estar portando a faca, com absoluta segurança.
- Você é uma grande decepção! Não soube dopá-la; mal consegue cavar uma cova; e ainda vomita toda vez que vê sangue. - comenta Marcos ironicamente.
A jovem não acredita no que está ouvindo, chegando a duvidar da própria sanidade.
- Marcos, o que é isso? O que está dizendo?
A resposta ao tom de súplica, ao olhar atônito, vem na forma de um inesperado e violento tapa no rosto; desequilibrando-a para levar ao chão, não apenas o seu corpo, mas a sobrevida de uma esperança.
Ele volta a encarar o visitante, que baixa os olhos em atitude subserviente, observando a enxada ser arrancada de seus dedos, em substituição a faca, gentilmente oferecida.
- Seja forte e termine o que começou. - sentencia Marcos, que afastando-se até a janela, retira calmamente do bolso da calça, uma portátil câmera de vídeo.
O olhar feminino em choque, nem parece se dar conta da tímida aproximação de seu algoz; resignando-se a um choro contido, sem palavras, a contemplar pela última vez, aquele semblante traidor; que dela se despedia impassivelmente, através do sórdido voyeurismo de uma filmagem.
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