Na foto acima Edward Snowden, Glenn Greenwald, David Miranda e a documentarista Laura Poitras
Edward Joseph Snowden, certamente se apresenta como uma das personalidades mais atuantes e controvertidas da atualidade. Analista de sistema, ex-funcionário da CIA (Agência Central de Inteligência) e ex-contratado da NSA (Agência de Segurança Nacional), pertencentes ao governo norte-americano; depois de um bom tempo servindo aos interesses da espionagem internacional, a partir de um dilema de consciência, resolveu tornar público, detalhes sobre a natureza de diversos programas de vigilância global financiado pelos EUA, cujo foco destinava-se tanto a invasão de privacidade dos próprios norte-americanos, como do monitoramento a cerca de nações consideradas uma ameaça em potencial, juntamente com países intitulados "amigos", de estreita e duradoura parceria política.
A revelação desta obscura face totalitarista, paranóica e voyeuristicamente manipuladora, da política governamental vigente, fez com que tal identidade fosse desnudada diante da incredulidade (até certo ponto, hipócrita), das demais lideranças mundiais. Snowden passa então, a ser considerado e tratado como traidor de sua pátria, pelas instituições que até então integrava, em discreto anonimato. Foi acusado formalmente por roubo de propriedade do governo, comunicação não autorizada de informações de defesa nacional e divulgação intencional de fontes classificadas de inteligência, para pessoa não-autorizada. O escândalo envolvendo a NSA como principal monitoradora das comunicações por internet e telefone no mundo inteiro, através de um sistema denominado metadata, que registrava quem falou com quem, por quanto tempo, onde estava quando falou e quanto tempo durou a conversa, veio recentemente a constituir parte importante do livro "Sem Lugar Para Se Esconder", de autoria do jornalista britânico Glenn Greenwald; cuja temática se refere ao conteúdo dos arquivos entregues por Edward Snowden a este veterano do periódico "The Guardian", onde publicou uma série de denúncias a respeito do engenhoso esquema de espionagem virtual, agora mais densamente elaboradas, incluindo considerações sobre o destino incerto e momentâneamente inglório de Snowden, em perfil de obra literária.
Esta digressão inicial me pareceu necessária, para aflorar em nossa memória, o que Snowden fazia enquanto funcionário engajado, fiel ao intervencionismo clandestino, de órgãos governamentais, mantidos à distância do reconhecimento público de suas atividades; e o que passou a fazer enquanto cidadão, buscando romper a névoa do indizível, do indivulgável, partindo para uma defesa quixotesca da verdade. Se pretendia exorcizar a cumplicidade de seu silêncio, ainda que isto significasse o início de seu inferno particular, perseguido por seus antigos parceiros e atuais algozes, por abraçar sua liberdade de escolha, jamais saberemos ao certo. Mas o fato, é que o jovem analista de sistemas que um dia já lutou como soldado, acreditando nos valores éticos de seu país, agora é execrado como inimigo de Estado, precisando implorar por asilo político a qualquer nação que se compadeça de um destino nada animador, onde a prisão na terra natal ou um iminente atentado a sua vida, são as únicas certezas a curto prazo.
Diante deste quadro ficcional, digno dos melhores romances de espionagem de Graham Greene ou Tom Clancy, acompanhamos o desespero contido de Snowden, cujo olhar serenamente convicto de sua escolha filosófica, nos inquieta com o seguinte questionamento: Por que buscar a verdade ? Por que nos sacrificarmos pela justiça ? Por que lutarmos por um preceito ético, quando a moral política onde vivemos, se apresenta tão vergonhosamente maleável a ponto de inverter os parâmetros da virtude, maquiando-a sob o disfarce da traição ?
É notório que não existe mais lugar para a inocência neste mundo. E nem pretendo destacar a conduta de Snowden, como baluarte de uma ética utópica, intocável, históricamente descompromissada com a gênese da política. O nômade sem pátria, emissário de uma verdade indesejável pelos poderosos, está longe de encarnar o protótipo do herói, mitológicamente arrependido de seus pecados, buscando a redenção por uma causa universalmente aceita. Até porque, como bem ressaltou o filósofo austríaco Friedrich Nietzsche, nada pode ser considerado garantia de bondade ou maldade em si, sem antes levar em conta, a existência de um conflito de interesses. Tal consideração nos mostra que tanto o bem quanto o mal, seriam interpretações circunstanciais, podendo receber avaliações diferentes de acordo com a realidade dos envolvidos no resultado do conflito. Assim, ao analisarmos o posicionamento ético de Snowden, apesar de não nos nos sugestionar com a persona do herói, suas atitudes possuem a grandeza da intenção heróica, ao salientar a continuidade de uma lógica civilizatória, capaz de impor limites viscerais a um poder que se tornaria extremo, pela invisibilidade do ataque sútil ao direito constitucional à liberdade e privacidade dos cidadãos. Tal poder, destituído de qualquer coibição, poderia viver o onipotente destemor pela consequência de seus atos.
A moralidade e a justiça (esta legitimada, na forma de um sistema de leis), só podem evoluir, enquanto se descobrirem como meio seguro de controlar a ambição irrestrita seja do indivíduo ou de um grupo, que procure se impor pelo perigoso privilégio de um segredo, frente ao desconhecimento dos demais. O escritor inglês J. R. R. Tolkien, retratou esta possibilidade arquetípica, na obra "O Senhor dos Anéis", quando o personagem Frodo, juntamente com seus amigos defensores da liberdade, precisam escoltar e ao mesmo tempo se proteger, da influência tirânica do Poder do Anel, conduzindo-o numa jornada épica, em favor da ordem, do equilíbrio de forças, em meio a convivência cada vez mais caótica entre os reinos da Terra Média.
"O medo é o pai da moralidade", reiterou Nietzsche; princípio depois expandido por outros pensadores, como Sigmund Freud, ao longo do ensaio "O Mal-Estar na Civilização". O artificialismo funcional da moralidade, que motiva o compartilhamento dos valores éticos pelos mais fracos, a fim de que nenhum deles um dia se acredite suficientemente superior, ao ponto de desafiar a autoridade do grupo; torna-se condição essencial para qualquer possibilidade de paz negociada, de compensadora sensação de segurança. E o que o governo norte-americano hoje chama inapropriadamente de traição, nada mais é do que uma reação de resgate ético, provocada individualmente, mas de alcance coletivo, numa tentativa de manter este verniz de ordem, de frágil equilíbrio, em meio ao vulcânico mundo de ambições políticas, que insistem em cercear nosso direito, ainda que ilusório ao livre arbítrio.
Snowden representa o discurso civilizatório, que embora agonizante, frente ao primitivismo da natureza humana, opta pela escolha de proteger a si mesmo e a coletividade, dos desvarios de um poder absoluto, cancerígeno a nossa sobrevivência como espécie. Foi do conhecimento como parte integrante deste mal, que ele conseguiu emergir por vontade própria, antecipando visionariamente os equívocos de uma trajetória suicida, trocando-a pela defesa de uma verdade autopreservadora; tão bem vivenciada por Nietzsche ao escrever: "O Homem precisa daquilo que em si há de pior, se pretende alcançar o que nele existe de melhor".
Rogério Ferraz
Cenas do filme " O Quinto Poder", que aborda o surgimento da organização transnacional Wikileaks, sediada na Suécia, sem fins lucrativos, que publicou em seu website, documentos, fotos e informações vazadas de governos ou empresas sobre assuntos confidenciais ocultos da opinião pública. Entre eles, a divulgação em 2007, do polêmico vídeo documentando o ataque de um helicóptero Apache dos EUA, responsável pela morte de 12 pessoas; ou a imagem da cópia de um manual de instruções para tratamento de prisioneiros na prisão militar norte-americana de Guantánamo, em território cubano. O jornalismo investigativo dos Wikileaks, revestido do mesmo idealismo contido nas denúncias de Snowden, representam esforços pelo compromisso humanitário com a verdade.
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