Neste primeiro Vida In Cena de 2016, procurei selecionar para o slide show, algumas imagens da minissérie brasileira "Ligações Perigosas"; assim como um mosaico com passagens do filme britânico de mesmo nome, do cineasta Stephen Frears, concorrente ao oscar de 1988; a fim de demonstrar a complexidade histórica do ato de confiar. Além disso, inseri imagens de três representativos personagens da novela "A Regra do Jogo": Romero, Atena e Tóia. O motivo que me levou a escolher a interação entre estas obras, de linguagens estéticas tão diversas, é que a essência dos folhetins tem uma natureza cíclica e muito parecida em seus elementos arquetípicos; ou seja, da tragédia grega ao teatro shakespereano; do cinema de François Troufault, Hitchcock, ou mesmo Woody Allen, à última ousadia de Quentin Tarantino, as inquietações do espírito humano, em torno da conquista da confiança ou iminência de perdê-la estão no epicentro dos mais diversos dramas da civilização; impulsionando ambivalentes respostas afetivas, que vão do ódio à volúpia de vingança; do desencanto à expectativa de redenção.
Em "Ligações Perigosas", por exemplo, tanto no cinema quanto na versão televisiva, a trama retrata o embate entre a malícia e a ingenuidade; o desejo e a virtude; a perversidade e o amor. Num ambiente de luxo e sofisticação, um homem e uma mulher, pactuam um jogo letal de interesses narcísicos, onde as peças do tabuleiro, representam a boa fé de suas vítimas; pessoas de quem deverão conquistar a amizade e a confiança, apostando todo poder de sedução, na possibilidade sádica da entrega amorosa absoluta, de seus parceiros, com a garantia premeditada da ausência de qualquer compromisso com os envolvidos. Como passatempo, tecem planos, estabelecem metas, valendo-se de sua amoralidade, apenas para provar que não são manipuláveis e descartáveis como os outros, podendo controlar soberanamente os próprios sentimentos. Em "A Regra do Jogo", Romero Rômulo e Atena, interagem com a sociedade a partir de um arsenal de mentiras, de máscaras de conduta igualmente descartáveis, manipulando a vida de quem dele se aproxima, ora pela fria e estratégica postura do xadrez; ora pela camuflagem da expressão emocional, blefando com indisfarçável segurança, como se estivessem numa mesa de pôcker.
Em "Ligações Perigosas", o ato de instigar a possibilidade da entrega amorosa, para depois provocar o abandono, acaba envenenando os próprios algozes; levando o atípico casal Valmont e Isabel a sofrer ainda que tardiamente, as consequências da culpa, do desprezo e da solidão. Em "A Regra do Jogo", Atena apesar da retórica individualista, sarcástica, resistente à ideia de voltar a confiar no outro; a partir do relacionamento com Romero, a quem considera sua alma gêmea, passa a viver na contradição de sentimentos, lutando para equilibrar-se na corda bamba entre a confiança do amor e o escapismo da sobrevivência a qualquer custo. Romero por sua vez, também se deixa aprisionar no mesmo limbo. Aproximou-se de Tóia por interesses escusos, acreditando estar protegido de qualquer vínculo afetivo, pelo pragmatismo da cobiça e da vaidade, que o mantinham protegido da consciente e desesperadora perda da esperança, tanto em relação a si mesmo como de qualquer outra pessoa, que dele se aproximasse. Romero não contava ser alvo da mesma armadilha sentimental que vitimou os interesses de Augusto Valmont e Isabel, na minissérie "Ligações Perigosas". Apesar da amoralidade de suas atitudes, Romero não preenche os requisitos clássicos de um psicopata. Ao estreitar o relacionamento com Tóia, vivencia toda a confiança e transparência de caráter que projetava nele, tornando Romero amaldiçoado por sua dualidade de propósitos; pela vontade de reinventar-se num roteiro de vida que infelizmente não perdoa mudanças; fazendo-o oscilar entre a perspectiva de fuga e o confronto suicida, mas definitivamente, contaminado pelo resgate, agora não mais utópico, da capacidade de confiar e amar alguém. Já a personagem de Tóia, por sua vez, vivencia a decepção daquele que acredita na ingênua legitimidade de seus princípios, até vê-los derrotados pela falsidade, de quem um dia mereceu a sua confiança. Situação similar encontramos também em "Ligações Perigosas", quando a virtuosa Mariana se entrega à melancolia, adoecendo até a morte após ser abandonada por Augusto Valmont, perdendo a confiança em seu amor.
A partir desta análise comparativa, podemos observar que não é exatamente a mentira, que afeta o bem estar da humanidade. Psicologicamente ela faz parte de um amadurecimento progressivo da própria consciência e em algumas situações, mentir para si mesmo ou para quem se ama, pode ser a única alternativa para se preservar a sanidade em tempos sombrios; como evidenciado no filme "A Vida é Bela". O problema é quando a mentira se banaliza no cotidiano das relações; transformando-se num "esporte", a ser praticado por quem nunca desejou mostrar a verdadeira face; enraizando-se na amizade, no amor ou numa parceria, durante anos; para então descobrirmos que interagíamos com uma farsa em forma humana. Como bem disse o filósofo Nietzsche: "Fiquei magoado não por teres me mentido; mas por não poder voltar a acreditar-te".
Rogério Ferraz
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