sábado, 11 de outubro de 2014

CONTOS DA MADRUGADA: LUA DE SANGUE - CAPÍTULO UM










CAPÍTULO UM

O vento impactou subitamente a janela, aliando-se a chuva fina, persistente, que tilintava já a algum tempo, parecendo arremessá-la em vigorosas chibatadas, contra a espessa superfície de vidro.
O homem que até então, aparentava estar entregue a um sono profundo e agitado, ensaia abrir os olhos, meneando a cabeça, franzindo o cenho, como se algo mais, além da ruidosa sonoridade da chuva, o incomodasse.  De repente, abre os olhos apreensivos e erguendo o braço num ágil reflexo, segura a mão de alguém, impedindo de continuar a tocar o seu rosto.
- Está com febre.  É só uma toalha úmida, não se preocupe. -  justifica-se uma voz feminina, suavemente rouca, fitando-o dentro dos olhos, na mais absoluta serenidade.
Contemplando-a como um náufrago, a emergir da imensidão oceânica de um sono perturbador, ele esboça um sorriso desconcertado entre os lábios, sentindo-se imediatamente atraído pela voluptuosa jovialidade daquela bela mulher; que lhe dispensava cuidados, afastando-o da indesejável tempestade de imagens mnêmicas, que ameaçavam atormentá-lo.
- Desculpe, não pretendia assustá-la.
- É compreensível.  Defesa é algo instintivo.  No seu lugar teria feito a mesma coisa. - admite amistosamente enquanto recolhe a toalha, largando-a a seu lado na cama.
- O que aconteceu ?
- Do que consegue se lembrar ?
Por alguns segundos, ele desvia o olhar, mirando a vastidão do teto, como se buscasse uma tela vazia, onde pudesse projetar suas recordações.
- Nada !  Apenas imagens soltas.  Estava abastecendo no posto de gasolina e depois ...  Me vejo girando dentro do carro, sem parar.
- Foi um acidente feio.  Meu pai chegou a pensar que não teria resistido.  Mas o seu anjo da guarda estava de plantão ontem a noite; e fez um bom trabalho.  Nenhuma lesão grave; apenas algumas escoriações e uma perna bem machucada.  Apesar disso, você ainda saiu no lucro !... - comenta a jovem, procurando descontrair a conversa.
- Por quanto tempo fiquei fora de órbita ? - indaga, receptivo ao bom humor da cuidadora.
- Doze horas, aproximadamente.  De qualquer forma, é bom procurar um médico, quando retornar à cidade.
- Meu Deus !
- A claridade da manhã já chegou, mas como pode ouvir, a chuva não para.  Interditou rodovias, provocou uma série de deslizamentos nas encostas.  A prefeitura já decretou estado de emergência.  Estamos isolados, pelo menos por um tempo.
- Então, devo ter perdido o controle do carro, quando a chuva ficou mais forte ... - ponderou ele, dando-se conta casualmente, de que se encontrava sem roupas sob o lençol.  
A moça percebeu o constrangimento em seu rosto, porém não conseguiu conter um sorriso malicioso.
- Não se preocupe, fui eu que troquei as cuecas.  Mas juro que não me aproveitei de você. - o tom de brincadeira, desfez aquele momentâneo embaraço.  - Falando sério, foi a nossa governanta que despiu você.  Não por completo, como pode ver.  Meu papel só entrou em cena, na hora de limpar as feridas e fazer os curativos.
- Pelo visto, sou um acidentado de sorte, por ter uma cuidadora tão bonita.
- É mesmo ?  Obrigada.  Mas só por curiosidade: costuma sempre vir para a região serrana nesta época do ano, doutor Victor Aguiar ?
A improvável pronúncia de seu nome, fez com que os olhos dele, fixassem a jovem novamente, nitidamente intrigados.
- Antes que pergunte se fomos apresentados alguma vez, lhe asseguro que não.  É que sou curiosa mesmo.  Durante o acidente, sua bagagem deve ter saltado do porta malas aberto, deixando você para trás.  Enquanto papai e o caseiro, tiravam você do veículo, fiquei afastada e avistei aquela mala entre as folhagens, na beira da estrada.  Quando chegamos em casa, ninguém reparou quando sumi com ela, levando-a para meu quarto.  E aí, sabe como é a curiosidade feminina.  Não resisti a dar uma olhadinha nos seus pertences ...  Ficou bravo comigo ?
O tom inconsequente, quase infantil de sua franqueza, fez com que o homem de feições maduras, mudasse a expressão do olhar, encarando-a com certa cumplicidade.
- Bem, agora que somos mais íntimos do que imaginava; até onde sabe sobre mim senhorita ...
- Ângela.  Ângela Leminscky.  Estou perdoada ?
- Tudo bem.  Foi um preço razoável a pagar, por terem concedido abrigo a um total desconhecido.  Nada ético, mas perfeitamente compreensível.
- Ética é para os fracos.  Nietzsche já sabia disso, antes de nascermos.  Isso é que dá ter um pai intelectual.  A propósito, adorei os livros de psicanálise e psiquiatria, que encontrei nas suas coisas.  Você é médico ?
- Psicólogo Clínico.  Se quiser marcar uma consulta, acho que tenho tempo disponível na minha agenda.
Ângela gostou daquele despretensioso senso de humor; sem aquela expressão recriminatória, tão óbvia em quarentões que dizem amar a irreverente atitude de mulheres mais jovens, dede que a sutil autoridade sobre elas, não seja colocada na berlinda.  Então, entregou-se a uma deliciosa risada, naturalmente sedutora, demonstrando uma atípica cordialidade, diante de alguém que acabara de conhecer.  Mas Ângela tinha consciência de que sempre foi assim.  Ousada, observadora, porém reservada nos momentos certos, quando o humor ajudava a mantê-la numa secreta zona de conforto, preservando-a de assuntos mais íntimos.
- Na verdade não seria má idéia; afinal nunca fui a um psicólogo.  Nem quando mais precisei.  Deve ser uma experiência realmente libertadora.
- A maioria teme por esta liberdade.
- Eu não.  Curtiria cada momento.  Até o silêncio pode ser revolucionário, quando estamos diante de quem confiamos.
Ao notar a entonação mais reflexiva de Ângela, ele tentou retomar o encanto descontraído daquela conversa, como um experiente maestro, resgatando a harmoniosa interatividade que começava a surgir entre os dois.
- Para uma moça tão jovem, você tem uma experiente habilidade com as palavras.  E este quarto tão aconchegante ...  É aqui que você dorme, enfermeira ?
- Claro que não; meu espaço não divido com ninguém.  É exclusivo para os hóspedes.  - comentou Ângela, com aquela carismática implicância, que lhe era característica.  - Mas você quase acertou na minha profissão, sabia ?
- Quer dizer que passei raspando ...
- Sou técnica de enfermagem.  Ano passado foi que ingressei na faculdade.  Mas acabei abandonando, antes do terceiro período.  Não fazia mais sentido acompanhar certos tipos de sofrimento.  Pouco depois, comecei a cursar teatro, mas sem nenhuma pretensão, a não ser distrair as idéias.
Então como enfermeira, você é uma excelente atriz ?  - indagou Victor, espirituosamente.
- Digamos que sim.
- Na minha situação atual, isto é no mínimo preocupante.  - arrematou ele, despertando um gratificante sorriso naquele belo semblante.  - Quantos anos você tem ?
- Vinte doutor !  Por que ?  Estou na escala estatística de suas preferências femininas?
- Quem sabe ?  Você possui uma inocente maturidade, capaz de cativar todos que se aproximam.  Por isso não entendo porque desistiu tão rápido da área de saúde.  Parecia motivada.  
- Durante um tempo, acreditei ser a escolha da minha vida.  - Ângela fez uma pausa, considerando por um instante se gostaria de continuar pelo rumo errante de suas confidências.  Decidiu arriscar.
- Eu acompanhava minha mãe nas sessões de quimioterapia, depois de ter descoberto o câncer.  Na adolescência, geralmente é difícil definir o que vamos ser num futuro tão imediato.  Mas a partir daqueles momentos, quando testemunhava o medo, a insegurança; estampados na fisionomia dela, assim como de outros pacientes que a gente acaba conhecendo pelo hospital durante a rotina de tratamento, comecei a me ver no papel daquelas enfermeiras.  A imaginar como seria cuidar, trazer um pouco de conforto emocional e até mesmo consolo espiritual, a tantas pessoas que na hora mais decisiva de suas vidas, anseiam por confiar em alguém.  É aquela esperança que alimentamos, de encontrar quem seja realmente digno de nossa verdade.  Afinal, é a única coisa que importa neste mundo, não é mesmo ? - concluiu, esboçando um tímido sorriso.  - Acho que "viajei" e não respondi de fato sua pergunta.
- Não precisa.  Talvez seja algo que não mereça ser revisitado agora.
- Ela morreu.  - disparou, secamente.  - Minha mãe morreu, apesar de todos os nossos esforços.  - insistiu Ângela, sustentando o olhar e o tom de alívio naquele desabafo; impedindo sequer que a voz embargasse pela contida emoção.  Continuou, grata por ter aquela atenção solidária, tão explícita nos olhos de Victor.  - Meu pai ficou mais desestruturado do que eu.  Deixou de lecionar na mesma universidade que frequentei.  Era professor de Filosofia; depois de muitos anos dedicados ao jornalismo.  Mas a família sempre esteve em primeiro lugar, mesmo quando o trabalho na redação do jornal ou as aulas noturnas, pareciam deixá-lo ausente.  "Vocês sempre serão as mulheres da mina vida"; ele gostava de dizer.  Após a perda de minha mãe, aí sim ele começou a se afastar; através da bebida.  Mas eu sempre estive lá; paciente, obstinada, para trazê-lo de volta.  Vendemos o apartamento no Rio e viemos definitivamente para nossa segunda casa, aqui em Teresópolis.  Ficamos um apoiando o outro e sem perceber, acabamos nos distanciando de parentes e amigos.  Era como se a cura para tamanho sofrimento, só pudesse ser alcançada através do amor e da dedicação exclusiva, que sentíamos um pelo outro.
- O afastamento acabou sendo uma opção.  Viver o luto na esperança de renascer das cinzas.
- É, talvez.  Como o mito da Fênix; o pássaro que renasce da própria ruína.  Papai me falou sobre isso.  Vocês parecem ter muito em comum.
- Mas e quanto a você ?  Conseguiu fazer do mito, a sua realidade ?
- Venho tentando, sem muito sucesso.  Não me imagino nunca mais pisando num hospital.  Mas quem sabe tinha que ser assim ?  A vida são ciclos que se fecham.  Pelo menos o teatro, tem sido um caminho ...
Ângela sentada a seu lado, tinha os ombros discretamente arqueados, os braços repousando sobre as pernas, como se um estranho cansaço se abatesse sobre o corpo.  Quando sentiu o leve toque de Victor, percorrendo-lhe a pele e o formato singelo da mão direita, na afetuosa intenção de entrelaçar os dedos aos seus; os dois se entreolharam, entregues a uma calma contemplativa, que só o idioma dos olhares, seria capaz de traduzir.  Ela apreciou secretamente aquela sugestiva carícia, resistindo corresponder ao próprio desejo.  Fixou o olhar, limitando-se a sorrir, com grata ternura.  Levantou-se silenciosamente em direção à porta.  Lá chegando, voltou-se para ele, tentando ignorar o que aconteceu.
- Tivemos uma conversa agradável, mas agora precisa descansar.  A febre vai diminuir e vou ajudá-lo a sair dessa cama.  Quando papai sofreu um acidente de moto na juventude, usou bengala durante um longo período.  Vou trazê-la para você e então poderá caminhar; quem sabe até almoçar conosco, daqui a pouco.  Tenho certeza que você e papai, se darão muito bem.
- Pare de fazer o social e diga do que tem medo.  Estamos aqui, só nós dois.  Não precisa se defender.  - Victor se apóia sobre os cotovelos, sustentando e suspendendo o corpo, para recostá-lo nos altos travesseiros, a fim de que pudesse olhá-la de frente.
- Não entendo o que quer dizer.
- Claro que entende.  Por isso está fugindo.
- Nem sei porque ainda estou aqui, me deixando ser analisada por um desconhecido, que pensa saber alguma coisa sobre mim, ambicionando desvendar todo e qualquer segredo, como quem decifra uma esfinge, só pelo poder do desafio.
- Não preciso decifrar você.  O que vejo é tão nítido.  Transparência, generosidade, associadas porém, a uma indesejável solidão.
- Pare com isso !  Por Deus, nós ajudamos você !  Por que fica me torturando com estas perguntas ?  Eu sei o que quer de mim.  Não difere de outros homens, que já conheci.
- Como assim ?
- É um quarentão atraente, atencioso; sabe como tratar uma mulher.  Faz ela se sentir única, quando está na sua presença.  Como psicólogo, consegue guardar seus segredos, sem permitir que ninguém tenha acesso ou os controle.  Mas você mesmo, gosta de exercer tal controle, sobre quem realmente lhe interessa.  Minha intuição nunca se engana.  E ela me diz por enquanto, para guardar uma certa distancia de seus encantos.
- Ok, impressionante habilidade intuitiva.  Mas ela deveria motivá-la a se aproximar de tudo que deseja; e não afastá-la, do que possa representar uma chance de felicidade.
- De uma vez por todas, o que espera de mim ?
- Espero que você fique.  Isso mesmo.  Se nada lá fora clama pela urgência de que deixe esse quarto; permaneça mais tempo ao meu lado.  Não quero parecer ingrato.  É evidente que será um prazer compartilhar de um almoço em família e tentar humildemente agradecer, por me devolverem à vida.  Mas a única coisa que importa para mim neste momento, é viver o encanto, de estar na sua companhia.
Ângela hesita, experimentando um imprevisível rubor facial; como se o hiato entre a latente fragilidade e a personagem espirituosamente forte, amadurecida, que procurava demonstrar, se descobrissem atônitamente dissociadas, sem lhe proporcionar qualquer alternativa de defesa, frente ao indisfarçável magnetismo pessoal, que aquele homem exercia sobre ela.  De repente, sua máscara de auto suficiência, parecia desintegrar-se aos poucos, diluída em fortuitas lágrimas de desamparo, conscientizando-a da carência de controle, sobre suas emoções.  Ângela enxuga discretamente o rosto, para em seguida desviar os olhos, negando-se a presenciar a reação dele, ao seu frustrado embate interior.
Victor sustenta placidamente o olhar, ainda que Ângela fugisse o tempo todo, do sugestivo poder de seu acolhimento.  Decidiu então. quebrar novamente o silêncio, evitando assim, que fosse embora.
- Vamos fazer uma coisa.  Eu proponho um jogo.  Se eu perder, você pode partir.  E nunca mais vou me intrometer na sua vida.
Ângela nada responde, mas sua tensão é evidente; baixando os olhos, sem conseguir abandonar o recinto.
- Obrigado por me dar uma chance.  A cada consideração que eu fizer, se por acaso tocar em alguma verdade, tão bem protegida no seu coração, você dará um passo a frente; até voltar a ficar bem perto de mim.  No primeiro erro, pode simplesmente abrir a porta e se não quiser mais voltar aqui, vou saber entender.
Ângela voltou a encará-lo, visivelmente entristecida, porém incapaz de resistir tanto à entonação calorosa de sua voz, como a ousadia daquela proposta.
- Você sempre foi uma mulher romântica.  Adorava testemunhar o amor entre seus pais; o que durante toda a infância, constituiu seu porto seguro; afastando-a de todos os medos, inclusive o de ficar sozinha consigo mesma.
Ângela relutou a princípio, mas finalmente adiantou um passo à frente,
- A doença de sua mãe pegou a todos de surpresa, varrendo com a força de um vento sudoeste, toda a quela promessa de felicidade intocável; revelando de forma assustadora, as dúvidas e fraquezas maternas; assim como a falsa fortaleza, refletida na imagem paterna.
Ângela vivenciou uma calma misteriosa, sentindo dominá-la por inteiro a cada frase ouvida; motivando-a sugestivamente a abandonar todo e qualquer receio de romper a providencial couraça de sentimentos inconfessos.
- Tentou seguir com sua vida, como qualquer adolescente; só que a depressão e a inegável dependência de seu pai, fez com que se protegesse sob a máscara de uma pretensa maturidade, muito além de suas forças.  A união com seu pai, afetou suas defesas em relação ao mundo, aos outros homens.  Projetava neles, um ideal de confiança, ao qual nenhum se dispôs a corresponder.  E assim continuou, pelo menos até conhecer alguém que resistiu por mais tempo, conquistando-a com juras de um amor, como você idealizava ser a relação de seus pais no passado.  Este em especial acabou tocando seu coração como nenhum outro, fazendo-a acreditar que poderia dar certo.  A menina desiludida com o mundo, começaria a dar lugar para uma jovem forte, segura de si, confiante naquele sentimento redentor, que traria de volta o brilho da felicidade aos seus olhos.  Mas ele acabou decepcionando-a profundamente; como o destino já o fizera, roubando-lhe a esperança de que pudesse salvar a sua mãe.
- Chega !  - advertiu Ângela, sem se preocupar em conter o próximo passo.
Victor não se intimidou e prosseguiu; buscando na fisionomia de Ângela, uma espécie de bússola emocional, capaz de guiá-lo pelos eventuais acertos ou equívocos, de suas conjeturas.
- Foi mais que uma decepção, não foi ?  Não se sentiu traída, trocada por outra garota.  Este rapaz traiu algo mais íntimo dentro de você.  Traiu a confiança de lhe dar o tempo necessário para fazer a transição da menina para a mulher.  A impaciência, a voracidade sexual, geralmente tão comuns aos meninos na idade dele; não permitiu diferenciá-la de outras jovens mais extrovertidas, liberais, com que já tinha se relacionado.  Não suportando a ansiedade diante de sua contínua hesitação, ele preferiu acreditar que não estava apaixonada; ou que tivesse outro em sua mente.  Então, quando menos esperava, entre tantas noites que sempre foram tão especiais para você, ele forçou uma situação; passando de impetuoso a agressivo.  E apesar de sua recusa, obrigou a fazer sexo com ele.
Ângela avançou os poucos passos que restavam, para desabar em prantos ao seu lado na cama, deitando-lhe a cabeça no colo, encolhendo as pernas para cima do colchão.  De forma impulsiva, parecia reativar a memória mais longínqua, refugiando-se regressivamente numa posição fetal.
- Por favor, eu não quero ouvir mais nada !  Por que está fazendo isso comigo ?
- Nunca foi minha intenção magoar você.  No fundo, sabe disso.  Pode não ter ideia do que já vivi; mas aqui e agora, sente que precisa se aproximar de mim.  E desejei o mesmo, desde que abri os olhos e fascinado, comecei a decorar cada linha de seu rosto, guardando na lembrança, cada olhar, cada gesto; até o doce tom da sua voz.  A gente leva muito tempo, armando mil teorias para desacreditar da possibilidade do amor.  Mas pode levar segundos, para voltar a querer conhecê-lo.
A serenidade de suas palavras, imbuídas do mais espontâneo lirismo, calaram o choro desprotegido de Ângela, que olhava-o nitidamente embevecida.  Levantando a cabeça de seu colo, aproximou-se definitivamente do corpo de Victor, deslizando as mãos em concha, suavemente pelo seu rosto, ainda tomado pela tênue e irregular aspereza da barba, como alguém que ficou temporariamente esquecido de si mesmo.  Da fêmea densidade daqueles olhos enternecidos, fluíram as últimas lágrimas, banhando o solitário contorno de seus lábios, pouco antes de se encontrarem aos de Victor; rendendo-se àquele bailado de bocas, línguas e sussurros, deliciosamente imprevisto, naturalmente arrebatador.
Inteiramente entregues ao transe insaciável de gemidos e carícias, Victor cadenciava o movimento de suas mãos, descendo e entremeando os dedos na sedosa ondulação de seus cabelos, até deslizá-los levemente pela nuca, arrepiando-lhe a pele, como um ardiloso alquimista, a lhe guiar pela dissonante magia dos sentidos.  Mordiscando-lhe o lábio inferior, numa crescente excitação, Ângela ergue ligeiramente os olhos, fitando-o com um sorriso ansioso.  Victor se detém pelo sinuoso contorno de suas costas, massageando-lhe o pescoço, depois os ombros, deitando cuidadosamente as alças do vestido, para mergulhar a boca avidamente, na maciez de sua pele, enquanto as mãos continuavam sua intrépida viagem, percorrendo até a linha da cintura, para aventurar-se alternadamente, tanto pela superfície, como pela estreita reentrância de suas coxas.  Oscilando a respiração, ao sabor inebriante daquela onda de prazer que invadia-lhe o corpo, Ângela beija-o delirantemente, rendida ao apaixonante exercício de sua feminilidade.
Nesse instante, o barulho de passos pelo corredor é seguido por uma seca batida na porta.
Ângela sobressaltada volta a conectar-se bruscamente à realidade, como alguém que fora despertada levianamente, de um sonho profundo.  Liberta-se a contragosto do abraço de Victor, ajustando tremulamente as alças do vestido, ao mesmo tempo que se levanta de forma precipitada, quase involuntária; focando o olhar na porta que se abria, com indiferente lentidão.
Victor quase não conseguiu conter o ímpeto de uma gargalhada, diante daquela reação ingenuamente mambembe, digna de uma comédia teatral.
- Estou atrapalhando alguma coisa ? - indagou a robusta senhora, de idade bem avançada, porém guardando no fundo dos olhos toda experiência que a vida lhe reservou para interpretar o código supostamente secreto dos amantes.
- De jeito nenhum.  Já estava me despedindo do doutor Victor; aconselhando-o inclusive a descansar bastante, para seu pronto restabelecimento. - retrucou rapidamente Ângela, sem o menor poder de convencimento.
- Posso imaginar. - considerou a mulher, mantendo uma irônica discrição.
- Bem, antes que me esqueça; acredito que ainda não foram apresentados.  Victor, esta é a nossa governanta dos sonhos, dona Leonora.  Ela assumiu a casa, desde que nos mudamos para cá, fazem uns dois anos.
- É uma satisfação conhecê-lo, senhor.  Espero em nome do dono da casa, que sua passagem por aqui,  seja a mais agradável possível.
- Obrigado, vocês são muito gentis.
- Ângela, seu pai pediu que fosse até o escritório.  O computador travou mais uma vez, enquanto estava trabalhando.  E sabe como ele fica impaciente com estas novas tecnologias.  Disse que só você saberia dar jeito.
- Pode deixar.  Ainda bem que pode contar com uma nerd, discípula de Steve Jobs, para salvá-lo nessas horas. - disse com a habitual irreverência, recuperando a espontaneidade.
- O almoço costuma ser servido às treze horas.  Presumindo que ainda tenha dificuldade para andar, posso trazer a refeição aqui no quarto, mais cedo se desejar.
- De forma alguma.  - interveio Ângela antes que Victor pensasse em responder.  - Irá almoçar conosco.  Já pensei em tudo, Leonora.  Pegue aquela bengala do papai e deixe lá no meu quarto.  Virei buscá-lo.  No seu caso, a melhor fisioterapia é a força de vontade.
- Como quiser; não discuto com minha gentil cuidadora.  - concorda Victor, fitando-a carinhosamente.
A governanta pigarreou providencialmente, diante do brilho no olhar de Ângela, que a ele direcionava-se como resposta.  - Querida, deixe o moço descansar.  Seu pai não gosta de esperar !
- Tem razão.  Está quase na hora dos remédios.  Deixei o antitérmico e o anti inflamatório, ali na estante.  Cuide bem dele na minha ausência,  - advertiu Ângela com indisfarçável entusiasmo, passando pela porta antes que Leonora a fechasse atrás de si; deixando de presenciar a expressão intrigada da governanta, ao indecifrável perfil daquele hóspede, que secretamente a incomodava.

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