domingo, 26 de outubro de 2014

VIDA IN CENA HALLOWEEN - MEDO: O AMIGO SOMBRIO







O medo é a emoção mais arcaica da humanidade; capaz de conduzir tanto à fúria do enfrentamento, como à fuga defensiva, visando em ambas as situações, a autopreservação frente ao desconhecido.  Nossa fascinação por histórias evocadoras do medo primevo, remontam desde os assustadores e hipnóticos contos de fada, até os gêneros literários e filmografias cinematográficas, fiéis representantes do terror e do horror através dos tempos; evidenciando como a nossa natureza psíquica, necessita experimentar este contato desorientador, instável, insólito, com circunstâncias que desafiem o ilusório controle que imaginamos ter sobre a vida cotidiana, colocando-nos diante de uma realidade imponderável, desesperadamente imprevisível.
Aproveitando a época do Halloween, tão enraizado na tradição cultural norte americana e que de algumas décadas para cá, cada vez mais se populariza no Brasil, torna-se interessante enfatizar alguns dados históricos, que ajudaram no decorrer dos séculos, à longevisar esta curiosa e irresistível cultura do medo entre povos das mais diferentes épocas e costumes.
As primeiras histórias sobre o mal já habitavam o folclore do imaginário ancestral, como na região da Mesopotâmia, quando um poema épico escrito numa tábua de argila, datado do século VII a.C; contava a trajetória do monarca sumério, Gilgamesh, que vivera dois mil anos antes, destacando numa das passagens, que este recusava ser amante da deusa Ishtar, por causa das crueldades que infligia a seus pretendentes.  Uma de suas vítimas, teria sido um pastor de ovelhas que apaixonara-se pela divindade, mas foi transformado por ela em um lobo sedento de sangue.  Prosseguindo em nossa viagem no tempo, podemos fazer uma escala em Roma, no poema Satyricon do prosador Petrônio (27 - 66 d.C), que nos conta a trama de dois homens: Níceros e um soldado, que viajam para uma vila distante.  Numa noite de lua cheia, decidem descansar em um cemitério, quando subitamente, uma espécie de maldição parece se apoderar do soldado, que tira a roupa, urina em torno dela e transformando-se em lobo, corre para a floresta, atacando um vilarejo próximo.  Ao retornar para casa, Níceros volta a encontrar o amigo na forma humana, trazendo no corpo uma série de feridas.  Este é um dos contos mais antigos sobre lobisomem.
Há exatos 250 anos, o escritor inglês Horace Walpole, pioneiro da literatura de terror gótico, inaugura o gênero ao publicar o livro "O Castelo de Otranto", vindo a inspirar uma legião de icônicos escritores, com Bram Stocker, Edgar Alan Poe e contemporaneamente, Stephen King.  Quando me referi a pouco, à narrativa dos contos de fada, é importante ressaltar, que na gênese desta supersticiosa tradição oral, imemorial, as histórias reunindo príncipes, princesas, fadas, bruxas e dragões, não foram inicialmente concebidas para crianças, mas sim, para adultos; com suas narrativas repletas de temas picantes, tais como, incesto, estupro, voyeurismo, canibalismo, etc; objetivando provocar medo entre os ouvintes e posteriormente, leitores.  Somente a partir do século 17, autores como o francês Charles Perrault e os irmãos Grimm, elaboraram versões mais amenas de Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Cinderela e A Bela Adormecida; direcionadas ao público infantil.
Na galeria dos monstros que habitam nosso inconsciente coletivo, nenhum alcançou maior popularidade do que os vampiros.  Relatos de seres sugadores de sangue, já eram comuns entre povos da Antiguidade, com babilônios, hebreus, gregos e romanos.  Três datas marcantes, acompanhariam a trajetória de sucesso desta mitologia popular.  Em 1047, como conteúdo de um documento para um príncipe russo, lá está a expressão Upir Lichy, que descreveria um vampiro maldoso.  Upir, tempos depois,  se transformaria em Vampir (em alemão), surgindo assim, vampiro.  Publicado na França em 1496, o livro "O Martelo das Feiticeiras", seria uma espécie de manual formulado pela Inquisição, que dentre outras coisas, detalhava a ação de vampiros.  E finalmente em 1897, Bram Stocker lançaria Drácula, inspirado na história do príncipe romeno Vlad Tepes, que empalava seus inimigos impiedosamente.  Não poderíamos deixar de fora, a obra prima da escritora inglesa Mary Shelley, "Frankenstein".  Filha de um filósofo e de uma professora, Mary cresceu cercada por livros e grandes nomes da literatura, entre eles, o gótico intelectual Lord Byron.  Nas rodas de conversa ela tomaria conhecimento sobre as macabras experiências do médico Erasmus Darwin, que tentara no século anterior, usar o potencial da eletricidade, para reanimar mortos; transformando-se assim, na fonte de inspiração da autora, quando criou o assustador Doutor Frankenstein.  O cientista valia-se de pedaços de cadáveres, para dar vida a uma monstruosa criatura, em cuja trama Mary também admitiu a influência do mito grego de Prometeu.  A princípio sua narrativa apresentada na forma de conto, acabou virando um romance, de tão elogiada; mas a jovem autora que ainda escreveria mais de vinte livros, nunca conseguiu igualar em sua vida, o sucesso do romance de estréia.
Aliás, a inspiração proporcionada por temerosos fatos reais, também colaboraram para o sucesso das tramas de terror, especialmente nas telas de cinema.  Por exemplo, no clássico cinematográfico de 1973, "O Exorcista", o autor do livro que dera origem ao filme, William Blatty, admitiu que seu primeiro referencial temático foi um artigo lido na biblioteca da universidade, onde um padre narrava as sessões de exorcismo para salvar um adolescente norte americano de 13 anos; fato ocorrido em 1949.  No roteiro do filme, observamos a torturante trajetória de Regan, uma garota de 12 anos possuída por um demônio que resiste sadicamente às tentativas obstinadas de um sacerdote católico, para vencê-lo e salvar a menina.  Em outro clássico, "Psicose" (1960), do mestre Alfred Hitchcock; o esquizofrênico Norman Bates teve como inspiração o homicida serial Ed Gein, que nos anos 50, matou duas mulheres e desenterrou o corpo de várias outras, que guardavam semelhança física com sua finada mãe.  No filme, uma moça acaba se hospedando em um motel decadente a beira de estrada, local gerenciado pelo estranho porém atencioso e tímido Norman; rapaz de dupla personalidade que escondia um macabro segredo, envolvendo o temperamento possessivo da mãe; uma cruel assassina.  Mais recentemente, em "Jogos Mortais" de 2004, o serial killer Jigsaw, estabelecia um jogo cerebral e sádico com as vítimas que capturava, concedendo-lhes uma chance de sobrevivência, desde que ela, seus amigos ou familiares, seguissem as regras de determinada missão de sacrifício.  No plano real, duas adolescentes do Tennessee (EUA), deixaram mensagem no celular de uma senhora de 52 anos, no mesmo estilo utilizado por Jigsaw, comunicando que uma amiga da mulher estava presa na sua casa e seria morta por um gás venenoso, se ela não agisse rapidamente.  Quando a senhora ouviu o recado, estava presente a um funeral, onde passou mal, apresentando um quadro de derrame cerebral.  Segundo consta, a polícia teria rastreado o telefonema, conseguindo prender as jovens criminosas.
E finalizando nossa abordagem sobre as diversas manifestações do medo na semana do Halloween, selecionei entre os vídeos desta edição, um personagem gótico da ficção científica, que revolucionaria os filmes de terror no final da década de 70, "Alien"; que sob a direção do cult cineasta Ridley Scott, viria a habitar os pesadelos da astronauta tenente Ripley, catapultando a carreira da promissora atriz Sigourney Weaver.  O monstro de layout totalmente original, parecia expressar o caos dos medos mais ocultos da natureza humana, relacionados a brutalidade amoral do mundo dos instintos, onde julgamentos civilizatórios de bondade ou maldade, tornam-se obsoletos, diante da fome de sobrevivência.
Espero que curtam a seleção aúdio visual; e aguardem a nossa temática de Halloween de 2015.  Boa diversão!










sábado, 11 de outubro de 2014

HALLOWEEN E MODA PRIMAVERA POR JACQUELINE CEREZO ( DESIGNER DE MODA E FIGURINO )



Queridos leitores do Divã Cultural, estamos aqui para falar de um tema bem interessante, as vestimentas das festas de halloween, que tradicionalmente tem em sua temática o terror e as fantasias no geral,  inspiradas em grandes clássicos dessa área do cinema.
Suas produções não deixam nada a desejar, principalmente por seus figurinos ousados e caracterizações marcantes. Os adeptos a esse tipo de festa, costumam caracterizar-se tendo em base famosos filmes e personagens, como por exemplo : “A hora do pesadelo” , “Sexta-feira treze” e quem não se lembra do Jason Vorhees? Suas principais características são sua máscara horrível e desfilar com uma serra elétrica ou uma faca nas mãos e ser um assassino em série.






(Reprodução: jbtoys)
E de Freddy Krueger, com a sua camisa listrada, aterrorizou suas vítimas em “A Hora do pesadelo”. Sua estratégia para matar é bastante curiosa, matando através do sonho e usando suas garras de aço.




(Freddye, reprodução: casadocarnaval)
Outro que serve de inspiração para os amantes das festas e de filmes é o temeroso “Chucky, o Brinquedo Assassino”, o boneco mais assustador que já vimos.





(Chucky, reprodução: fantasiascriativas)
Em contra partida temos a Elvira, a rainha das trevas, personagem forte e marcante, que chegamos a ter medo, mas na hora de se fantasiar, nos permite uma certa sensualidade. O que me chama a atenção, é que dentro do nosso closet todos nós temos peças de roupas e muitos acessórios que podem nos ajudar na construção desses famosos personagens.





(Elvira, reprodução: umcantoprachamardemeu)
É impressionante como estes personagens transitam no universo da moda e servem muitas vezes de inspiração para que os estilistas criem suas coleções, além de fazer com que eles explorem esse universo com características que os fazem ser reconhecidos pelas suas criações. 

A curiosa estilista Vivienne Westwood, de origem inglesa, é a maior precursora dessa temática da moda, usando cores fortes e com materiais como couro, veludo, além de correntes e tecidos estonados.  Seus ícones são espartilhos,  plataformas exageradas e cortes totalmente fora da simetria considerada normal.





(Vivienne Westwood, reprodução: standard)                                                                     (Lily Cole (vestido de V.W), reprodução: Terra)              
Podemos citar também o Alexander McQueen, que foi considerado o ícone da alfaiataria, era Britânico e infelizmente morreu bem cedo, tinha problemas de depressão e quando perdeu sua mãe aos 41 anos se suicidou um dia antes do funeral dela. Suas coleções tinham um alto grau de personalidade, não usava cores, sua predileção era por preto cinza claro ao mais escuro e isso o fazia único. As formas de suas modelagens imperavam, fazia com que sua imaginação buscasse o inconsiderável, asas de pássaro e sapatos estranhos faziam com que nos lembrássemos dos filmes de terror.



(McQuenn, reprodução: gothicbox)
Agora que temos referências de estilistas transitando no universo que muita gente só considerava existir em filme terror, podemos caprichar nos looks das festas de halloween. Quanto mais original, mais perfeito e admirável vai ficar, respeite as cores e a maquiagem pesada.
Se você quer se vestir bem, tome cuidados! Alguns muito importantes são: identificar-se com a fantasia, escolher algo que você não vá se despencar antes de começar a festa, além disso, fatores como se você não tem resistência ao calor tente uma fantasia mais leve, certifique se o local da festa é aberto ou fechado, se tem ar condicionado ou não, e o mais importante, antes de pensar na fantasia, faça uma boa pesquisa sobre o seu personagem,  pois pequenos detalhes podem fazer toda a diferença.  
Não podemos deixar de falar da estação mais leve do ano, a primavera, que nos enche de leveza. É tempo de renovação e inclusão de roupas leves e alegres, muitas flores e cores pastéis, transparências, rendas e até mesmo o voal.A renda de gruipir dará o ar da graça em blusas, vestidos e aplicação de detalhes.






(Renda Gruipir, por roupasfemininas.org) 




As saias ganharão um grande destaque nessa estação nos comprimentos curto e médio, variando os cortes retos, assimétricos e as plissadas.




Não esqueçam  dos acessórios, invista  em lenços, tiaras e óculos. E nada melhor que uma sandália rasteira para usar nos dias mais quentes, este ano elas ganharam grande destaque. Charmosas e elegantes, com laços e estampas laços e estampas , além disso temos as sapatilhas que vão te acompanhar do trabalho até a balada com toda elegância e conforto merecido.



(Reprodução, Feminice Carioca https://www.facebook.com/pages/Feminices-Carioca/1472835522954762?ref=hl)
Se sua opção for um salto opte pelos saltos médios e quadrados, serão os ideais. Já a maquiagem, será o contrario do que vimos no verão, a moda foi bocas vermelhas e muito rímel com sobrancelhas marcadas, lembram? Então, a primavera pede Mac básica bem suave e cores pastéis, assim como os esmaltes. Quanto mais suaves, mais chic e elegante.
Mleus agradecimentos aos amigos Paulo Rogério e Alex, boa primavera e meu carinho especial a todos.
Jacqueline Cerezo
Designer de Moda e Figurino
j.cerezo@bol.com.br / (21) 99754-4482

fb.com/jakcerezo / (21) 3347-2336

CONTOS DA MADRUGADA: LUA DE SANGUE - PRÓLOGO














PRÓLOGO

As pálpebras pareciam pesar como chumbo.  As mãos tateavam aflitas pela superfície da cama, como se buscassem a presença de alguém ao se lado.  Vanessa sentia a boca seca e a aspereza dos lábios, que tentava umedecer em vão com a ponta língua.  Pensou ter sido drogada, pois os braços e pernas demoravam a reagir, conferindo-lhe uma sensação de dormência angustiante; ao mesmo tempo em que não se intimidando pela insólita situação, insistia por manter os olhos bem abertos, ainda que a visão turva, nebulosa, permitisse apenas vislumbrar espectros do ambiente.  Esforçando-se, ergueu o corpo, sustentando o peso nos braços impaciente, que apesar de enfraquecidos, conseguiram impulsioná-la para trás, alteando assim, seu campo de visão, ao encostar na parede.  O movimento sobre o colchão, provocou um som estridente, que rasgou o silêncio, causando-lhe um inesperado calafrio.
- Que lugar era aquele ? - indagou em pensamento.  A incômoda e surreal sensação de névoa que inicialmente obscurecia seus olhos, começou a se dissipar, embora vivenciasse o desconfortável formigamento nas pernas.  Agora conseguia identificar o local mais detalhadamente, superando o leve embaçamento visual, como se contemplasse uma pintura de Monet.  Era um quarto grande, modestamente ocupado por uma mobília antiga, onde tanto o armário de roupas, a cômoda, a poltrona ou a velha cortina que escondia as janelas, adquiriam um aspecto solitariamente taciturno, sombrio desprovidos de qualquer cuidado humano.  À direita, logo abaixo das janelas, destacava-se uma estranha mesa metálica, semelhante àquelas de instrumentação cirúrgica.  Vanessa colocou as pernas para fora da cama e ensaiou levantar-se, sentindo uma breve vertigem, incapaz de impedí-la de se apoiar na parede, precisando acreditar na firmeza dos seus movimentos.  A respiração ficou mais acelerada, quando desejou gritar pelo nome do namorado, mas hesitou, diante da possibilidade de ter o silêncio como resposta, obtendo a inaceitável certeza de que estaria sozinha.  Adiantou os primeiros passos, percebendo a pálida luminosidade que invadia parcialmente o quarto, vindo do corredor.  Esta lhe permitiu observar perplexa, o número de objetos cortantes dispostos naquela mesinha metálica.  Eram facas de caça, de diferentes modelos e tamanhos, incluindo um cutelo, levemente untado por manchas ressecadas de sangue.  Olhar incrédulo, Vanessa sentiu um arrepio instantâneo, estremecer-lhe o corpo.  Fechou os olhos por um segundo, procurando controlar o stress e ao abrí-los, escolheu objetivamente uma das facas, portando-a convenientemente às costas, escondida por debaixo da blusa, presa à calça jeans.
Vanessa distanciou-se daquela sinistra exposição, tornando seus movimentos mais cautelosos, a fim de não chamar a atenção, alertando o desconhecido, de que recobrara precocemente os sentidos.  Precisava transformar todo e qualquer resquício de desespero paralisante em indômita estratégia de fuga.  O namorado, Marcos, tinha que estar vivo e ela o encontraria, nem que fosse a última coisa que fizesse.  Avançou pelo estreito e longo corredor, apoiando-se pelas paredes, aumentando assim, a confiança na articulação das pernas.  Esgueirava-se como um animal assustado, pressentindo o iminente araque do predador, quando avistou uma porta lateral entreaberta; convidando-a a conhecer o outro quarto, antes de prosseguir até a sala.  A princípio passou direto por ela, mas parou pouco depois, meneando a cabeça inconformada, por admitir não desfazer da hipótese de que Marcos talvez estivesse ali, indefeso, precisando de sua ajuda.  Permaneceu imóvel, na tentativa de ouvir alguma sonoridade, capaz de denunciar a presença de alguém.  Nada !  Decidiu então, empurrar a porta cuidadosamente, rezando para que não fizesse barulho.  Respirou aliviada, por sua prece ter sido atendida.
O recinto era bem mais precário de peças, do que aquele em que estava; identificando inicialmente, apenas o leito, o criado mudo e sobre ele, um volumoso abajur, cuja intensa luminosidade, cobria todo o corpo, estendido no envelhecido colchão.  Enquanto se aproximava, a jovem experimentou um súbito frenesi, ao capturar em sua visão periférica a existência de um vulto à espreita.  Tratava-se de um esguio cabideiro, ligeiramente afastado da cama, repleto de roupas masculinas amontoadas, cobertas por um largo terno escuro.  Tão logo se recompôs, o olhar alcançou o corpo feminino, abandonado à própria nudez e mortalmente maculado pela crueldade humana.  A figura daquela mulher permanecia estática, em meio a coloração esmaecida do lençol, completamente tinto de sangue.  A cabeça decepada jazia ao lado do travesseiro, encharcado por uma aterradora viscosidade rubra, que escorria lânguidamente, desenhando trilhas de inimaginável sofrimento, que enfim, derramavam-se em lágrimas sanguíneas, sobre o frio assoalho de madeira.  Vanessa levou as mãos à boca, calando um grito iminente.  Ergueu os olhos para a parede vazia à sua frente, forçando-se a manter o discernimento e proceder a leitura da inusitada mensagem, provavelmente delineada pela caligrafia trêmula do assassino, instantes depois da execução ritualística.  Era algum tipo de profecia; quem sabe um versículo do Antigo Testamento, que dizia: "O Sol se converterá em Trevas e a Lua em Sangue, antes que venha o grande e temível dia do Senhor".
Vanessa começou a recuar, olhando as coisas ao redor, focada na intenção de impedir que toda aquela loucura, a desestruturasse de vez.  Embora ainda vivesse a experiência, de forma mais tênue, dos efeitos do torpor químico em seu organismo, sabia que a adrenalina do medo poderia ser o antídoto visceral, capaz de lhe dar a força necessária para vencer os próprios limites e escapar daquele lugar, a todo custo.  Retirou a faca escondida às costas, empunhando-a com um propósito inabalável.  Saiu às pressas do quarto, avançando em sua corrida até a sala, francamente invadida pela claridade artificial que vinha da varanda, rasgando o véu da noite.  Lançou-se sofregamente até a porta, girando a maçaneta e esboçando um sorriso aflito, ao percebê-la destrancada, como se conspirasse a seu favor.  Caminhando determinada, avistou ainda da varanda, uma vasta área de mata deserta, além de uma velha caminhonete, estacionada a considerável distância.  Neste momento, a imagem do cutelo ensanguentado e da mulher morta, vieram á sua mente, passando a imaginar desesperadamente, se Marcos não estaria desfalecido, na carroceria daquele veículo.  Olhou para a faca em sua mão mais uma vez, segurando-a com firmeza e quando decidiu lançar-se a uma corrida definitiva, sentiu alguém puxá-la novamente para casa, enlaçando-a vigorosamente pelos ombros e tapando sua boca.  Ela tentava resistir à imobilização, conseguindo desajeitadamente girar a faca entre os dedos, impulsionando-a cegamente para trás.  Desferiu um  golpe impreciso, aleatório, ferindo de raspão a parte lateral da coxa, de quem a intimidava.  Nesse instante, uma voz masculina sussurrou em tom imperativo, ao seu ouvido: - Larga essa faca, larga!  Calma, sou eu, Marcos!
A última frase, pronunciada numa voz que lhe era tão familiar, assumiu um efeito terapêutico, afastando-a daquele transe de pânico; convencendo-a a largar a arma.  Marcos então, decide soltá-la, apressando-se em fechar a porta, quando foi surpreendido por um novo e caloroso abraço, como se Vanessa procurasse exorcizar neste contato, toda a sua agonia.
- Meu Deus, você está vivo!  Senti tanto a sua falta.  Vamos embora daqui; me tira desse pesadelo.
Marcos corresponde ao gesto de carinho descansando-lhe a cabeça sobre o ombro, acariciando seus cabelos, num acolhimento paternal típico de homens maduros, que apreciam ser o porto seguro de mulheres mais jovens.
- Temos de ser cautelosos.  Quando acordei na caçamba daquela caminhonete, nem acreditei que tinha sobrevivido.  Não sabemos onde esse cara se escondeu ou mesmo que tipo de jogo mórbido, ele tem em mente. - enfatizou Marcos.
Vanessa abandonou a segurança daquele abraço, olhando apreensiva pra o ferimento em sua perna.
- Meu amor, eu acabei ferindo você!  Me perdoe.
- Esquece isso.  Foi superficial.  Precisamos pensar em alguma coisa. - garante Marcos, abaixando-se cuidadosamente para pegar a faca.
- Marcos, ele deve ter se livrado do meu carro na saída do camping; logo depois de golpeá-lo e de ter me drogado.  Aquele veículo lá fora, certamente é dele.  Você entende um pouco de mecânica; poderia fazer uma ligação direta, sei lá!  Estaríamos bem longe, quando ele voltasse.
- Pode ser perigoso ...  - ponderou Marcos.
- Perigoso?!  Você não tem idéia do que vi lá dentro.  Ele é totalmente louco; um tipo de fanático religioso.
- Onde achou a faca?
- Existem várias no quarto onde me deixou desacordada.
- Vamos ficar aqui e nos armar contra ele.  São dois contra um; e graças a Deus, não machucou você.
- Meu bem, não se trata de um criminoso comum.  Naquele outro quarto, tem uma mulher morta, da maneira mais perversa que já vi.  Era como se tivesse sido sacrificada.  Ele chegou a escrever frase com sangue dela, na parede.  Algo adiou que fizesse o mesmo comigo.
- O que ele escreveu?
- Uma coisa bizarra.  Uma espécie de mensagem bíblica, falando de um sol mergulhado em trevas e uma lua banhada em sangue.  - nesse instante, Vanessa hesita em continuar, vivenciando um insight repentino.
- Que dia é hoje?
- Acho que ...  27 de outubro.  Por que?
- É a noite do eclipse.  Daquele raro fenômeno.
- Como assim?
- A noite da Lua de Sangue!  Não foi casual.  Ele planejou e esperou por este dia. - concluiu Vanessa, tomada pela perplexidade.
Antes que Marcos tecesse algum comentário, a porta se abriu abruptamente, colidindo contra a parede.  A jovem gritou aterrorizada, posicionando-se instintivamente às costas do namorado; observando quando este, empunhou a faca de forma ameaçadora, esticando o braço esquerdo  para o lado, certificando-se da localização dela, para mantê-la fora do campo de visão do assassino.
O homem baixo, corpulento, tinha a pele muito clara e curiosamente avermelhada, como se tivesse acabado de fazer um cansativo esforço físico.  Calvo, olhos amendoados, ostentava na mão direita, uma pesada enxada, tão suja de terra quanto o macacão desbotado, que trajava sobre a pele.  dos lábios para o queijo proeminente, escorria um estranho e discreto filete amarelado, enquanto fixava o olhar ansioso, sobre o casal.
Marcos se aproxima, encarando-o fria e silenciosamente; consciente de estar portando a faca, com absoluta segurança.
- Você é uma grande decepção!  Não soube dopá-la; mal consegue cavar uma cova; e ainda vomita toda vez que vê sangue. - comenta Marcos ironicamente.
A jovem não acredita no que está ouvindo, chegando a duvidar da própria sanidade.
- Marcos, o que é isso?  O que está dizendo?
A resposta ao tom de súplica, ao olhar atônito, vem na forma de um inesperado e violento tapa no rosto; desequilibrando-a para levar ao chão, não apenas o seu corpo, mas a sobrevida de uma esperança.
Ele volta a encarar o visitante, que baixa os olhos em atitude subserviente, observando a enxada ser arrancada de seus dedos, em substituição a faca, gentilmente oferecida.
- Seja forte e termine o que começou.  - sentencia Marcos, que afastando-se até a janela, retira calmamente do bolso da calça, uma portátil câmera de vídeo.
O olhar feminino em choque, nem parece se dar conta da tímida aproximação de seu algoz; resignando-se a um choro contido, sem palavras, a contemplar pela última vez, aquele semblante traidor; que dela se despedia impassivelmente, através do sórdido voyeurismo de uma filmagem.


CONTOS DA MADRUGADA: LUA DE SANGUE - CAPÍTULO UM










CAPÍTULO UM

O vento impactou subitamente a janela, aliando-se a chuva fina, persistente, que tilintava já a algum tempo, parecendo arremessá-la em vigorosas chibatadas, contra a espessa superfície de vidro.
O homem que até então, aparentava estar entregue a um sono profundo e agitado, ensaia abrir os olhos, meneando a cabeça, franzindo o cenho, como se algo mais, além da ruidosa sonoridade da chuva, o incomodasse.  De repente, abre os olhos apreensivos e erguendo o braço num ágil reflexo, segura a mão de alguém, impedindo de continuar a tocar o seu rosto.
- Está com febre.  É só uma toalha úmida, não se preocupe. -  justifica-se uma voz feminina, suavemente rouca, fitando-o dentro dos olhos, na mais absoluta serenidade.
Contemplando-a como um náufrago, a emergir da imensidão oceânica de um sono perturbador, ele esboça um sorriso desconcertado entre os lábios, sentindo-se imediatamente atraído pela voluptuosa jovialidade daquela bela mulher; que lhe dispensava cuidados, afastando-o da indesejável tempestade de imagens mnêmicas, que ameaçavam atormentá-lo.
- Desculpe, não pretendia assustá-la.
- É compreensível.  Defesa é algo instintivo.  No seu lugar teria feito a mesma coisa. - admite amistosamente enquanto recolhe a toalha, largando-a a seu lado na cama.
- O que aconteceu ?
- Do que consegue se lembrar ?
Por alguns segundos, ele desvia o olhar, mirando a vastidão do teto, como se buscasse uma tela vazia, onde pudesse projetar suas recordações.
- Nada !  Apenas imagens soltas.  Estava abastecendo no posto de gasolina e depois ...  Me vejo girando dentro do carro, sem parar.
- Foi um acidente feio.  Meu pai chegou a pensar que não teria resistido.  Mas o seu anjo da guarda estava de plantão ontem a noite; e fez um bom trabalho.  Nenhuma lesão grave; apenas algumas escoriações e uma perna bem machucada.  Apesar disso, você ainda saiu no lucro !... - comenta a jovem, procurando descontrair a conversa.
- Por quanto tempo fiquei fora de órbita ? - indaga, receptivo ao bom humor da cuidadora.
- Doze horas, aproximadamente.  De qualquer forma, é bom procurar um médico, quando retornar à cidade.
- Meu Deus !
- A claridade da manhã já chegou, mas como pode ouvir, a chuva não para.  Interditou rodovias, provocou uma série de deslizamentos nas encostas.  A prefeitura já decretou estado de emergência.  Estamos isolados, pelo menos por um tempo.
- Então, devo ter perdido o controle do carro, quando a chuva ficou mais forte ... - ponderou ele, dando-se conta casualmente, de que se encontrava sem roupas sob o lençol.  
A moça percebeu o constrangimento em seu rosto, porém não conseguiu conter um sorriso malicioso.
- Não se preocupe, fui eu que troquei as cuecas.  Mas juro que não me aproveitei de você. - o tom de brincadeira, desfez aquele momentâneo embaraço.  - Falando sério, foi a nossa governanta que despiu você.  Não por completo, como pode ver.  Meu papel só entrou em cena, na hora de limpar as feridas e fazer os curativos.
- Pelo visto, sou um acidentado de sorte, por ter uma cuidadora tão bonita.
- É mesmo ?  Obrigada.  Mas só por curiosidade: costuma sempre vir para a região serrana nesta época do ano, doutor Victor Aguiar ?
A improvável pronúncia de seu nome, fez com que os olhos dele, fixassem a jovem novamente, nitidamente intrigados.
- Antes que pergunte se fomos apresentados alguma vez, lhe asseguro que não.  É que sou curiosa mesmo.  Durante o acidente, sua bagagem deve ter saltado do porta malas aberto, deixando você para trás.  Enquanto papai e o caseiro, tiravam você do veículo, fiquei afastada e avistei aquela mala entre as folhagens, na beira da estrada.  Quando chegamos em casa, ninguém reparou quando sumi com ela, levando-a para meu quarto.  E aí, sabe como é a curiosidade feminina.  Não resisti a dar uma olhadinha nos seus pertences ...  Ficou bravo comigo ?
O tom inconsequente, quase infantil de sua franqueza, fez com que o homem de feições maduras, mudasse a expressão do olhar, encarando-a com certa cumplicidade.
- Bem, agora que somos mais íntimos do que imaginava; até onde sabe sobre mim senhorita ...
- Ângela.  Ângela Leminscky.  Estou perdoada ?
- Tudo bem.  Foi um preço razoável a pagar, por terem concedido abrigo a um total desconhecido.  Nada ético, mas perfeitamente compreensível.
- Ética é para os fracos.  Nietzsche já sabia disso, antes de nascermos.  Isso é que dá ter um pai intelectual.  A propósito, adorei os livros de psicanálise e psiquiatria, que encontrei nas suas coisas.  Você é médico ?
- Psicólogo Clínico.  Se quiser marcar uma consulta, acho que tenho tempo disponível na minha agenda.
Ângela gostou daquele despretensioso senso de humor; sem aquela expressão recriminatória, tão óbvia em quarentões que dizem amar a irreverente atitude de mulheres mais jovens, dede que a sutil autoridade sobre elas, não seja colocada na berlinda.  Então, entregou-se a uma deliciosa risada, naturalmente sedutora, demonstrando uma atípica cordialidade, diante de alguém que acabara de conhecer.  Mas Ângela tinha consciência de que sempre foi assim.  Ousada, observadora, porém reservada nos momentos certos, quando o humor ajudava a mantê-la numa secreta zona de conforto, preservando-a de assuntos mais íntimos.
- Na verdade não seria má idéia; afinal nunca fui a um psicólogo.  Nem quando mais precisei.  Deve ser uma experiência realmente libertadora.
- A maioria teme por esta liberdade.
- Eu não.  Curtiria cada momento.  Até o silêncio pode ser revolucionário, quando estamos diante de quem confiamos.
Ao notar a entonação mais reflexiva de Ângela, ele tentou retomar o encanto descontraído daquela conversa, como um experiente maestro, resgatando a harmoniosa interatividade que começava a surgir entre os dois.
- Para uma moça tão jovem, você tem uma experiente habilidade com as palavras.  E este quarto tão aconchegante ...  É aqui que você dorme, enfermeira ?
- Claro que não; meu espaço não divido com ninguém.  É exclusivo para os hóspedes.  - comentou Ângela, com aquela carismática implicância, que lhe era característica.  - Mas você quase acertou na minha profissão, sabia ?
- Quer dizer que passei raspando ...
- Sou técnica de enfermagem.  Ano passado foi que ingressei na faculdade.  Mas acabei abandonando, antes do terceiro período.  Não fazia mais sentido acompanhar certos tipos de sofrimento.  Pouco depois, comecei a cursar teatro, mas sem nenhuma pretensão, a não ser distrair as idéias.
Então como enfermeira, você é uma excelente atriz ?  - indagou Victor, espirituosamente.
- Digamos que sim.
- Na minha situação atual, isto é no mínimo preocupante.  - arrematou ele, despertando um gratificante sorriso naquele belo semblante.  - Quantos anos você tem ?
- Vinte doutor !  Por que ?  Estou na escala estatística de suas preferências femininas?
- Quem sabe ?  Você possui uma inocente maturidade, capaz de cativar todos que se aproximam.  Por isso não entendo porque desistiu tão rápido da área de saúde.  Parecia motivada.  
- Durante um tempo, acreditei ser a escolha da minha vida.  - Ângela fez uma pausa, considerando por um instante se gostaria de continuar pelo rumo errante de suas confidências.  Decidiu arriscar.
- Eu acompanhava minha mãe nas sessões de quimioterapia, depois de ter descoberto o câncer.  Na adolescência, geralmente é difícil definir o que vamos ser num futuro tão imediato.  Mas a partir daqueles momentos, quando testemunhava o medo, a insegurança; estampados na fisionomia dela, assim como de outros pacientes que a gente acaba conhecendo pelo hospital durante a rotina de tratamento, comecei a me ver no papel daquelas enfermeiras.  A imaginar como seria cuidar, trazer um pouco de conforto emocional e até mesmo consolo espiritual, a tantas pessoas que na hora mais decisiva de suas vidas, anseiam por confiar em alguém.  É aquela esperança que alimentamos, de encontrar quem seja realmente digno de nossa verdade.  Afinal, é a única coisa que importa neste mundo, não é mesmo ? - concluiu, esboçando um tímido sorriso.  - Acho que "viajei" e não respondi de fato sua pergunta.
- Não precisa.  Talvez seja algo que não mereça ser revisitado agora.
- Ela morreu.  - disparou, secamente.  - Minha mãe morreu, apesar de todos os nossos esforços.  - insistiu Ângela, sustentando o olhar e o tom de alívio naquele desabafo; impedindo sequer que a voz embargasse pela contida emoção.  Continuou, grata por ter aquela atenção solidária, tão explícita nos olhos de Victor.  - Meu pai ficou mais desestruturado do que eu.  Deixou de lecionar na mesma universidade que frequentei.  Era professor de Filosofia; depois de muitos anos dedicados ao jornalismo.  Mas a família sempre esteve em primeiro lugar, mesmo quando o trabalho na redação do jornal ou as aulas noturnas, pareciam deixá-lo ausente.  "Vocês sempre serão as mulheres da mina vida"; ele gostava de dizer.  Após a perda de minha mãe, aí sim ele começou a se afastar; através da bebida.  Mas eu sempre estive lá; paciente, obstinada, para trazê-lo de volta.  Vendemos o apartamento no Rio e viemos definitivamente para nossa segunda casa, aqui em Teresópolis.  Ficamos um apoiando o outro e sem perceber, acabamos nos distanciando de parentes e amigos.  Era como se a cura para tamanho sofrimento, só pudesse ser alcançada através do amor e da dedicação exclusiva, que sentíamos um pelo outro.
- O afastamento acabou sendo uma opção.  Viver o luto na esperança de renascer das cinzas.
- É, talvez.  Como o mito da Fênix; o pássaro que renasce da própria ruína.  Papai me falou sobre isso.  Vocês parecem ter muito em comum.
- Mas e quanto a você ?  Conseguiu fazer do mito, a sua realidade ?
- Venho tentando, sem muito sucesso.  Não me imagino nunca mais pisando num hospital.  Mas quem sabe tinha que ser assim ?  A vida são ciclos que se fecham.  Pelo menos o teatro, tem sido um caminho ...
Ângela sentada a seu lado, tinha os ombros discretamente arqueados, os braços repousando sobre as pernas, como se um estranho cansaço se abatesse sobre o corpo.  Quando sentiu o leve toque de Victor, percorrendo-lhe a pele e o formato singelo da mão direita, na afetuosa intenção de entrelaçar os dedos aos seus; os dois se entreolharam, entregues a uma calma contemplativa, que só o idioma dos olhares, seria capaz de traduzir.  Ela apreciou secretamente aquela sugestiva carícia, resistindo corresponder ao próprio desejo.  Fixou o olhar, limitando-se a sorrir, com grata ternura.  Levantou-se silenciosamente em direção à porta.  Lá chegando, voltou-se para ele, tentando ignorar o que aconteceu.
- Tivemos uma conversa agradável, mas agora precisa descansar.  A febre vai diminuir e vou ajudá-lo a sair dessa cama.  Quando papai sofreu um acidente de moto na juventude, usou bengala durante um longo período.  Vou trazê-la para você e então poderá caminhar; quem sabe até almoçar conosco, daqui a pouco.  Tenho certeza que você e papai, se darão muito bem.
- Pare de fazer o social e diga do que tem medo.  Estamos aqui, só nós dois.  Não precisa se defender.  - Victor se apóia sobre os cotovelos, sustentando e suspendendo o corpo, para recostá-lo nos altos travesseiros, a fim de que pudesse olhá-la de frente.
- Não entendo o que quer dizer.
- Claro que entende.  Por isso está fugindo.
- Nem sei porque ainda estou aqui, me deixando ser analisada por um desconhecido, que pensa saber alguma coisa sobre mim, ambicionando desvendar todo e qualquer segredo, como quem decifra uma esfinge, só pelo poder do desafio.
- Não preciso decifrar você.  O que vejo é tão nítido.  Transparência, generosidade, associadas porém, a uma indesejável solidão.
- Pare com isso !  Por Deus, nós ajudamos você !  Por que fica me torturando com estas perguntas ?  Eu sei o que quer de mim.  Não difere de outros homens, que já conheci.
- Como assim ?
- É um quarentão atraente, atencioso; sabe como tratar uma mulher.  Faz ela se sentir única, quando está na sua presença.  Como psicólogo, consegue guardar seus segredos, sem permitir que ninguém tenha acesso ou os controle.  Mas você mesmo, gosta de exercer tal controle, sobre quem realmente lhe interessa.  Minha intuição nunca se engana.  E ela me diz por enquanto, para guardar uma certa distancia de seus encantos.
- Ok, impressionante habilidade intuitiva.  Mas ela deveria motivá-la a se aproximar de tudo que deseja; e não afastá-la, do que possa representar uma chance de felicidade.
- De uma vez por todas, o que espera de mim ?
- Espero que você fique.  Isso mesmo.  Se nada lá fora clama pela urgência de que deixe esse quarto; permaneça mais tempo ao meu lado.  Não quero parecer ingrato.  É evidente que será um prazer compartilhar de um almoço em família e tentar humildemente agradecer, por me devolverem à vida.  Mas a única coisa que importa para mim neste momento, é viver o encanto, de estar na sua companhia.
Ângela hesita, experimentando um imprevisível rubor facial; como se o hiato entre a latente fragilidade e a personagem espirituosamente forte, amadurecida, que procurava demonstrar, se descobrissem atônitamente dissociadas, sem lhe proporcionar qualquer alternativa de defesa, frente ao indisfarçável magnetismo pessoal, que aquele homem exercia sobre ela.  De repente, sua máscara de auto suficiência, parecia desintegrar-se aos poucos, diluída em fortuitas lágrimas de desamparo, conscientizando-a da carência de controle, sobre suas emoções.  Ângela enxuga discretamente o rosto, para em seguida desviar os olhos, negando-se a presenciar a reação dele, ao seu frustrado embate interior.
Victor sustenta placidamente o olhar, ainda que Ângela fugisse o tempo todo, do sugestivo poder de seu acolhimento.  Decidiu então. quebrar novamente o silêncio, evitando assim, que fosse embora.
- Vamos fazer uma coisa.  Eu proponho um jogo.  Se eu perder, você pode partir.  E nunca mais vou me intrometer na sua vida.
Ângela nada responde, mas sua tensão é evidente; baixando os olhos, sem conseguir abandonar o recinto.
- Obrigado por me dar uma chance.  A cada consideração que eu fizer, se por acaso tocar em alguma verdade, tão bem protegida no seu coração, você dará um passo a frente; até voltar a ficar bem perto de mim.  No primeiro erro, pode simplesmente abrir a porta e se não quiser mais voltar aqui, vou saber entender.
Ângela voltou a encará-lo, visivelmente entristecida, porém incapaz de resistir tanto à entonação calorosa de sua voz, como a ousadia daquela proposta.
- Você sempre foi uma mulher romântica.  Adorava testemunhar o amor entre seus pais; o que durante toda a infância, constituiu seu porto seguro; afastando-a de todos os medos, inclusive o de ficar sozinha consigo mesma.
Ângela relutou a princípio, mas finalmente adiantou um passo à frente,
- A doença de sua mãe pegou a todos de surpresa, varrendo com a força de um vento sudoeste, toda a quela promessa de felicidade intocável; revelando de forma assustadora, as dúvidas e fraquezas maternas; assim como a falsa fortaleza, refletida na imagem paterna.
Ângela vivenciou uma calma misteriosa, sentindo dominá-la por inteiro a cada frase ouvida; motivando-a sugestivamente a abandonar todo e qualquer receio de romper a providencial couraça de sentimentos inconfessos.
- Tentou seguir com sua vida, como qualquer adolescente; só que a depressão e a inegável dependência de seu pai, fez com que se protegesse sob a máscara de uma pretensa maturidade, muito além de suas forças.  A união com seu pai, afetou suas defesas em relação ao mundo, aos outros homens.  Projetava neles, um ideal de confiança, ao qual nenhum se dispôs a corresponder.  E assim continuou, pelo menos até conhecer alguém que resistiu por mais tempo, conquistando-a com juras de um amor, como você idealizava ser a relação de seus pais no passado.  Este em especial acabou tocando seu coração como nenhum outro, fazendo-a acreditar que poderia dar certo.  A menina desiludida com o mundo, começaria a dar lugar para uma jovem forte, segura de si, confiante naquele sentimento redentor, que traria de volta o brilho da felicidade aos seus olhos.  Mas ele acabou decepcionando-a profundamente; como o destino já o fizera, roubando-lhe a esperança de que pudesse salvar a sua mãe.
- Chega !  - advertiu Ângela, sem se preocupar em conter o próximo passo.
Victor não se intimidou e prosseguiu; buscando na fisionomia de Ângela, uma espécie de bússola emocional, capaz de guiá-lo pelos eventuais acertos ou equívocos, de suas conjeturas.
- Foi mais que uma decepção, não foi ?  Não se sentiu traída, trocada por outra garota.  Este rapaz traiu algo mais íntimo dentro de você.  Traiu a confiança de lhe dar o tempo necessário para fazer a transição da menina para a mulher.  A impaciência, a voracidade sexual, geralmente tão comuns aos meninos na idade dele; não permitiu diferenciá-la de outras jovens mais extrovertidas, liberais, com que já tinha se relacionado.  Não suportando a ansiedade diante de sua contínua hesitação, ele preferiu acreditar que não estava apaixonada; ou que tivesse outro em sua mente.  Então, quando menos esperava, entre tantas noites que sempre foram tão especiais para você, ele forçou uma situação; passando de impetuoso a agressivo.  E apesar de sua recusa, obrigou a fazer sexo com ele.
Ângela avançou os poucos passos que restavam, para desabar em prantos ao seu lado na cama, deitando-lhe a cabeça no colo, encolhendo as pernas para cima do colchão.  De forma impulsiva, parecia reativar a memória mais longínqua, refugiando-se regressivamente numa posição fetal.
- Por favor, eu não quero ouvir mais nada !  Por que está fazendo isso comigo ?
- Nunca foi minha intenção magoar você.  No fundo, sabe disso.  Pode não ter ideia do que já vivi; mas aqui e agora, sente que precisa se aproximar de mim.  E desejei o mesmo, desde que abri os olhos e fascinado, comecei a decorar cada linha de seu rosto, guardando na lembrança, cada olhar, cada gesto; até o doce tom da sua voz.  A gente leva muito tempo, armando mil teorias para desacreditar da possibilidade do amor.  Mas pode levar segundos, para voltar a querer conhecê-lo.
A serenidade de suas palavras, imbuídas do mais espontâneo lirismo, calaram o choro desprotegido de Ângela, que olhava-o nitidamente embevecida.  Levantando a cabeça de seu colo, aproximou-se definitivamente do corpo de Victor, deslizando as mãos em concha, suavemente pelo seu rosto, ainda tomado pela tênue e irregular aspereza da barba, como alguém que ficou temporariamente esquecido de si mesmo.  Da fêmea densidade daqueles olhos enternecidos, fluíram as últimas lágrimas, banhando o solitário contorno de seus lábios, pouco antes de se encontrarem aos de Victor; rendendo-se àquele bailado de bocas, línguas e sussurros, deliciosamente imprevisto, naturalmente arrebatador.
Inteiramente entregues ao transe insaciável de gemidos e carícias, Victor cadenciava o movimento de suas mãos, descendo e entremeando os dedos na sedosa ondulação de seus cabelos, até deslizá-los levemente pela nuca, arrepiando-lhe a pele, como um ardiloso alquimista, a lhe guiar pela dissonante magia dos sentidos.  Mordiscando-lhe o lábio inferior, numa crescente excitação, Ângela ergue ligeiramente os olhos, fitando-o com um sorriso ansioso.  Victor se detém pelo sinuoso contorno de suas costas, massageando-lhe o pescoço, depois os ombros, deitando cuidadosamente as alças do vestido, para mergulhar a boca avidamente, na maciez de sua pele, enquanto as mãos continuavam sua intrépida viagem, percorrendo até a linha da cintura, para aventurar-se alternadamente, tanto pela superfície, como pela estreita reentrância de suas coxas.  Oscilando a respiração, ao sabor inebriante daquela onda de prazer que invadia-lhe o corpo, Ângela beija-o delirantemente, rendida ao apaixonante exercício de sua feminilidade.
Nesse instante, o barulho de passos pelo corredor é seguido por uma seca batida na porta.
Ângela sobressaltada volta a conectar-se bruscamente à realidade, como alguém que fora despertada levianamente, de um sonho profundo.  Liberta-se a contragosto do abraço de Victor, ajustando tremulamente as alças do vestido, ao mesmo tempo que se levanta de forma precipitada, quase involuntária; focando o olhar na porta que se abria, com indiferente lentidão.
Victor quase não conseguiu conter o ímpeto de uma gargalhada, diante daquela reação ingenuamente mambembe, digna de uma comédia teatral.
- Estou atrapalhando alguma coisa ? - indagou a robusta senhora, de idade bem avançada, porém guardando no fundo dos olhos toda experiência que a vida lhe reservou para interpretar o código supostamente secreto dos amantes.
- De jeito nenhum.  Já estava me despedindo do doutor Victor; aconselhando-o inclusive a descansar bastante, para seu pronto restabelecimento. - retrucou rapidamente Ângela, sem o menor poder de convencimento.
- Posso imaginar. - considerou a mulher, mantendo uma irônica discrição.
- Bem, antes que me esqueça; acredito que ainda não foram apresentados.  Victor, esta é a nossa governanta dos sonhos, dona Leonora.  Ela assumiu a casa, desde que nos mudamos para cá, fazem uns dois anos.
- É uma satisfação conhecê-lo, senhor.  Espero em nome do dono da casa, que sua passagem por aqui,  seja a mais agradável possível.
- Obrigado, vocês são muito gentis.
- Ângela, seu pai pediu que fosse até o escritório.  O computador travou mais uma vez, enquanto estava trabalhando.  E sabe como ele fica impaciente com estas novas tecnologias.  Disse que só você saberia dar jeito.
- Pode deixar.  Ainda bem que pode contar com uma nerd, discípula de Steve Jobs, para salvá-lo nessas horas. - disse com a habitual irreverência, recuperando a espontaneidade.
- O almoço costuma ser servido às treze horas.  Presumindo que ainda tenha dificuldade para andar, posso trazer a refeição aqui no quarto, mais cedo se desejar.
- De forma alguma.  - interveio Ângela antes que Victor pensasse em responder.  - Irá almoçar conosco.  Já pensei em tudo, Leonora.  Pegue aquela bengala do papai e deixe lá no meu quarto.  Virei buscá-lo.  No seu caso, a melhor fisioterapia é a força de vontade.
- Como quiser; não discuto com minha gentil cuidadora.  - concorda Victor, fitando-a carinhosamente.
A governanta pigarreou providencialmente, diante do brilho no olhar de Ângela, que a ele direcionava-se como resposta.  - Querida, deixe o moço descansar.  Seu pai não gosta de esperar !
- Tem razão.  Está quase na hora dos remédios.  Deixei o antitérmico e o anti inflamatório, ali na estante.  Cuide bem dele na minha ausência,  - advertiu Ângela com indisfarçável entusiasmo, passando pela porta antes que Leonora a fechasse atrás de si; deixando de presenciar a expressão intrigada da governanta, ao indecifrável perfil daquele hóspede, que secretamente a incomodava.

CONTOS DA MADRUGADA: LUA DE SANGUE - CAPÍTULO DOIS









CAPÍTULO DOIS


Ângela, de braços dados com seu convidado, procurava sincronizar os movimentos aos dele; observando-o apoiar-se vigorosamente na bengala de cedro, cujo design artesanal e confortável, ajudava a equilibrar seus passos; embora ainda pisasse com dificuldade, procurando disfarçar tal limitação física, mantendo uma expressão altiva, quase indiferente no semblante.  Distraiu o olhar pela espaçosa dimensão da sala, decorada por uma mobília clássica, tradicional, exibindo peças provavelmente herdadas de uma saudosa história familiar.  À sua frente, uma grande mesa chamava atenção pelos pesados pés de mogno, ostentando na superfície, numa disposição detalhista, duas garrafas de vinho de boa safra; taças de impecável transparência; pratos, talheres e ornamentais travessas, contendo vistosas receitas gastronômicas, expostas à tentação do paladar mais exigente.  Os olhos de Victor, na medida que a distancia diminuía, agora fixavam-se na figura do anfitrião, sentado à cabeceira, onde mantinha sua seletiva concentração no conteúdo do noticiário televisivo, em panorâmica tela de alta definição, instalada na parede dianteira.  Na estimativa de Victor, deveria ser um homem de seus cinquenta e poucos anos; corpo esguio, definido, assemelhando-se ao perfil de um atlético professor de dança.  O corpo aliava-se ao desenho facial, quase intocável pelas intrusas marcas do tempo; conferindo-lhe uma inegável jovialidade.  Introspectivo, gestual contido, os olhos esverdeados revelavam entretanto, uma aguçada percepção, que fluía do foco mais específico, ao conhecimento globalizante do que acontecia ao seu redor.
- Papai, eu não disse que o tiraria da cama, bem antes do que ele esperava ?  Victor Aguiar, este é meu pai, Adriano Leminscky.  - apresentou Ângela, nítidamente animada.
- Prazer em conhecê-lo.  - complementou Victor reservadamente, em tom de mero protocolo social.
Sem desviar os olhos do noticiário, Leminscky disparou um comentário mordaz.
- O acidente só não foi mais grave, porque diminuiu a velocidade, pelo atalho da estrada, que passava por minha propriedade.  Costuma beber além da conta, ou estava muito nervoso, fugindo de alguém ?
Após um breve silêncio constrangedor, especialmente para Ângela; veio a resposta de Victor, com tranquila ironia.
- Nenhuma das duas possibilidades.  Apenas devo ter sido imprudente ao volante, assim como o senhor agora, com as palavras; quando se propõe a testar as pessoas.
Ângela olhou surpresa para os dois, sem acreditar no rumo que aquela conversa poderia tomar.  Jamais imaginou que o primeiro encontro entre eles, fosse pautado por inoportuna tensão.
Leminscky pela primeira vez, teve a consideração de encará-lo, esboçando um sorriso debochado entre os lábios.
- Que outra maneira de testar a coragem de um homem, se não colocá-lo pouco a vontade, em território desconhecido ?  Gosto de quem não elabora o que vai dizer.  Mostra firmeza de caráter.  Será que podemos esquecer e recomeçar do zero ?
- Perfeitamente.  - concordou Victor, inalterado.
- Sentem-se, por favor.  Espero que nosso hóspede aprecie o salmão ao molho de alcaparras, com batatas gratinadas.  Dona Leonora caprichou na escolha.  Me acompanham neste saboroso vinho tinto Concha y Toro ? - comentou Adriano, ao observar a providencial chegada de Leonora; apontando discretamente para uma das garrafas sobre a mesa.
- Obrigado.  - aceitou Victor, curiosamente motivado, pelo temperamento do anfitrião.
A partir daí, a interação entre ambos, tornou-se estranhamente promissora; articulando-se por uma "montanha russa" de temas e argumentações, da mais imprevisível diversidade, em relação aos quais, Ângela quase não conseguia se pronunciar, diante da dinâmica fluência de pontos de vista, temperados pelo pensamento astuto e de ambivalente senso de humor do pai; assim como das ponderações e divergências contextuais, do experiente psicólogo.
Em determinado momento, o assunto em pauta, foi interrompido pela captura do olhar de Leminscky, em relação a uma matéria televisiva, que abordava crimes seriais ritualísticos, ainda não inteiramente  elucidados pela justiça.  Entre eles, a menção a um crime bárbaro, que chocou a opinião públicaa, no dia de um específico eclipse lunar.
- Que coisa horrível !  Por causa de um facínora, um fenômeno tão misteriosamente encantador, passa a ser associado a uma ideia de morte.  Aliás, alguém saberia me dizer, o motivo da coloração vermelha da lua ? - indagou Ângela, sinceramente interessada.
- É um acontecimento raro.  Só neste século, serão apenas oito manifestações.  E eles ocorrem em tétrades, ou seja, obedecem a uma sequencia irregular de quatro aparições, num período de mais ou menos dois anos.  A coloração avermelhada, é por causa da filtragem dos raios solares pela atmosfera terrestre, que acaba convertendo a tonalidade azul para vermelha.  - esclarece Victor, demonstrando também ser um informal apreciador de astronomia.  
- Vejo que a psicologia, não é sua única paixão.  - comenta elogiosamente Ângela.
A referência ao duplo assassinato ocorrido dois anos atrás, que acabou popularmente conhecido como "crimes da lua de sangue", despertou o irresistível comentário do jornalista.
- A psicologia criminal deveria ter uma importância mais decisiva e reconhecida na investigação destes casos.  Não sou da sua área, mas meu faro jornalístico, não acredita na versão de crime ritualístico, motivado por uma crise psicótica.
- É mesmo ?  E qual seria a sua hipótese ?
- Me corrija se estiver errado.  As duas mulheres foram mortas naquela mesma noite, com uma evidente alusão bíblica ao raro fenômeno lunar.  Na casa, também foi encontrado o corpo do assassino; com claras indicações de um provável suicídio, depois de cometer a barbárie.  Em sua caminhonete, foi achado um notebook, onde a polícia descobriu a existência de uma suposta mensagem de despedida, onde demonstrava lúcido e sofrido arrependimento pelos assassinatos; passando a idéia de um temperamento instável, explosivo, acometido por uma imaginação delirante, que lhe ordenara executar aquela espécie de cerimonial.  Enfim, tudo muito certinho, politicamente preciso, conduzindo a opinião pública, a um juízo de valor sobre aquele homem, que a meu ver, não corresponde a realidade dos fatos.
- O senhor suspeita de uma farsa ?
- Sim.  Aquele tétrico espetáculo não era fruto de uma distorcida veneração religiosa.  Uma das mulheres encontradas, por exemplo, era noiva do rapaz que se suicidou.  A outra, uma garota de programa, que não teve sequer familiares, para reclamar o corpo.  O que observei não foi um ritual insano; mas algo muito mais calculista, teatral; para que acreditássemos naquele cenário.
- Se entendi bem, está considerando uma possível ação planejada; quem sabe até por um segundo criminoso, que poderia ser o mentor intelectual de toda tragédia.
- Você leu meus pensamentos, meu caro.  Tentaram vender a ideia de um serial killer, que poderia vir a matar novamente, escolhendo vítimas de forma aleatória, provavelmente no próximo período da lua de sangue.  Só que o fenômeno aconteceu por mais duas vezes naquele ano e nenhum outro crime com as mesmas características foi comprovado nestas datas.  Um deles, no meu entender teria arquitetado o plano, enquanto o outro, certamente mais jovem e forte, teria fisicamente executado.  No final das contas, teria sido traído e eliminado, após o serviço prestado.  Faz sentido, doutor ? - provocou o jornalista, com certo ar de superioridade, em sua explanação.
- Se estivermos falando de um psicopata, provavelmente sim.
- Vocês psicólogos; e estudiosos da mente, insistem em tratar a maldade humana, como caso de loucura.  E se for um sujeito normal, determinado em seu propósito e capaz de manter o sangue frio para controlar todas as variáveis a sua volta, esperando sempre escapar ileso de seus desafios ?
- A loucura a que me refiro, é moral e não necessariamente, mental.  Existem vários níveis de psicopatia ou sociopatia, como ainda prefiro chamar esse transtorno de personalidade.  Existe uma corrente de neurocientistas que desde 2003, encontraram através de testes, monitorados por sofisticados exames de ressonância magnética, algumas disfunções cerebrais, que poderiam causar a maioria dos sintomas desse quadro clínico, especialmente em casos de assassinos seriais; aquela categoria mais grave, que chamamos de psicopatas malévolos.  Eles teriam prazer no próprio ato de matar e de não serem pegos; sendo esta uma tentadora recompensa.  Mas acredito numa natureza basicamente semelhante a tal perfil, relacionada ao nosso histórico pessoal, através de um inconsciente coletivo, que nos ligaria aos antepassados mais primitivos, antes mesmo de qualquer influência civilizatória.  Assim, quando chamamos de monstro, um criminoso pedófilo por exemplo, não deveríamos nos surpreender pelo que se tornou com o passar dos anos; mas sim, pelo que ele não evitou deixar ressurgir em sua personalidade, fingindo aceitar as regras da sociedade, enquanto mantinha em sigilo, uma total descrença e repúdio em relação às mesmas.  Esta natureza brutalmente irracional, não apresentaria qualquer resquício de consciência moral, de culpabilidade; como se presentificasse a herança de seus ancestrais.
- Entendo.  A culpa seria então, o passaporte para a nossa humanidade.
- Isso mesmo. Sem ela, somos insensíveis canibais de todo e qualquer tabu da civilização.
- Nossa, mas essa conversa está muito elevada pra o meu gosto !  Papai, vamos mudar de assunto ?  Algo mais leve, para acompanhar a digestão ? - interfere Ângela, com aquele humor intransigente, que lhe era tão peculiar.
Adriano, olhava atentamente seu interlocutor, com inegável identificação, quando se voltou para a filha e tocando-lhe carinhosamente a mão, aprovou de imediato o seu pedido.
- Tem razão, querida !  Depois do almoço, se nosso convidado concordar, gostaria de continuar a nossa troca de ideias; o que certamente parece fascinar a nós dois.
- Com toda certeza. - reforçou Victor, olhando-os com simpatia.
No decorrer do encontro, os três pareciam interagir cada vez mais, abordando a princípio com certa discrição, particularidades sobre suas trajetórias de vida, que ao sabor do bom vinho que degustavam, iam se tornando acentuadamente descontraídas; temperadas por um bom humor capaz de aproximá-los de um discurso intimamente familiar.  Ângela falava sobre situações imprevistas e engraçadas dos tempos de colégio; e de como ela e sua mãe eram unidas, tornando-se fiéis confidentes.  Adriano lembrava o conturbado início de seu trabalho como jornalista, ainda no derradeiro período da ditadura militar, mencionando fatos inusitados, respaldados vez por outra, por suas preferidas citações filosóficas.  E Victor, embora correspondesse ao agradável entrosamento, expondo opiniões sempre muito pertinentes e espirituosas, era o que menos falava sobre o passado, preferindo manter-se na posição de cordial ouvinte; demonstrando o desejo de conhecer mais intimamente, a maneira de ser e de viver, daquelas pessoas que generosamente o acolheram.
Quando Ângela, ao final de um divertido comentário, não consegue inibir um inesperado e gracioso bocejo, que denunciava sua sonolência; entre risos descontraídos, admite ter abusado um pouco de seu limite natural para bebida; decidindo então se despedir, alegando atender um chamado irresistível da cama.  Após a despedida de sua filha, Adriano sugere ao hóspede, acompanhá-lo até o seu escritório, onde gostaria de apresentá-lo a sua estimada biblioteca particular.  Lá chegando, entre uma referência e outra, a um diversificado acervo de obras clássicas, Adriano convida-o a sentar-se numa confortável poltrona, que ao primeiro olhar intuitivo de Victor, parecia ser o favorito lugar de poder e reflexão, do próprio anfitrião; enquanto este se acomodava em um compacto sofá, situado próximo à escrivaninha, repleta de papéis que margeavam o antigo e solitário computador.
Depois de uma breve pausa, fitando por alguns segundos a serena fisionomia do psicólogo, tateou pelo bolso da calça, buscando o isqueiro e o maço de cigarros quase vazio.
- Se importa ?  Quer que eu abra a janela ?
- Não será preciso.  Larguei faz um ano.  Aconselho a fazer o mesmo.
- Já fui mais compulsivo.  agora me limito aquelas horas onde a vontade fala mais alto, como após o almoço, por exemplo.  Ajuda a equilibrar a ansiedade.  - comentou, acendendo rapidamente o cigarro.
Minha filha gostou de você !
- Ela disse isso ?
- Todo pai amoroso, sabe quando o olhar de sua filha, revela um brilho diferente.  Confessou sentir uma grande afinidade por você; a ponto de em pouquíssimo tempo falar muito dela, da mãe, sobre mim ...  O fato de ser psicólogo, deve ajudá-lo a cativar o imaginário das pessoas, levando-as a não serem tão defensivas, não é mesmo ?
- Na maioria das vezes, é o contrário dessa expectativa.  O medo de que acabem falando mais do que o necessário, aumenta a desconfiança e o silêncio.
- Minha filha então, figura entre seus atendimentos bem sucedidos.  - retrucou irônicamente.
- Pode ser.  Mas por que falamos sobre isso ?  A receptividade dela em relação a mim, o incomoda de alguma forma ?
- Não; acho bom que ela tenha um amigo.  Nos últimos tempos, Ângela não foi muito feliz em termos de referência masculina, pelo menos entre os jovens de sua convivência.  Não sei o quanto de sua intimidade, chegou a lhe confidenciar, mas muito do seu isolamento aqui comigo, foi reforçado por uma tentativa de estupro que ela sofreu.
Victor permaneceu calado, sem transparecer qualquer sinal de familiaridade anterior com o relato.  Sua atenção silenciosa, estimulou Adriano a prosseguir.
- Ângela é tudo para mim.  Sempre foi.  Mesmo antes da doença de minha mulher, lembro-me da cena de ciúmes que fazia, quando chegava em casa e só parecia ter olhos para minha menininha; brincando e procurando saber como foi o seu dia, antes mesmo de procurar por minha mulher no quarto, abraçando-a com aquela impetuosa sensualidade, típica dos casais apaixonados.  Mas depois ela acabou entendendo e isto só aumentou nossa aliança amorosa.  E que nenhuma relação de casal, pode ser tão forte, quanto a dependência afetiva que os pais sentem pelos filhos.  Vocês psicólogos, sabem o quanto uma menina pode ser fascinada pelo pai, da mesma forma que mães parecem ficar cegas para todo resto, quando se trata de proteger um filho.
- Nada mais freudiano do que este triângulo amoroso em família.  - assegurou Victor, sentindo-se mais a vontade na conversa.
Adriano esboçou um sorriso melancólico, completando: - Embora ás vezes, a conexão afetiva entre pai e filha possa ir muito além de uma sublimada situação edipiana.
- Vejo que a psicanálise também é seu foco de interesse.
- Como filósofo e por trabalhar constantemente com as mais variadas fontes de informação, que o jornalismo nos impõe, a gente acaba se envolvendo por muitos temas e pensadores.  Conheço pouco da prática analítica, mas os textos de conteúdo antropológico de Freud, como "Totem e Tabu" ou "O Mal - Estar na Civilização", sempre despertaram meu interesse, ampliando-me a visão sobre a natureza humana.  Por isso gostei tanto da abordagem que fez ainda agora sobre a possível essência ancestral da psicopatia.
- Desculpe, se acabei desviando-lhe do assunto.  Mas o senhor se referia a uma forte conexão com sua filha ...
O jornalista surpreendeu-se positivamente, com o franco interesse pela iminência de seu desabafo.  Após tragar pela última vez, concluiu precocemente o hábito quase terapêutico, esticando-se para amassar metade do cigarro, na superfície de um velho cinzeiro de prata sobre a escrivaninha. 
- Depois da morte de minha esposa, eu senti pela primeira vez na vida, o chão escapar sob meus pés.  era uma sensação horrível, de total desamparo como homem, como pai, chegando a afetar minha disciplina profissional.  Enveredei pela  bebida; ausentava-me das obrigações paternas; comecei a me envolver com pessoas e ambientes, que acabaram me apresentando a uma face obscura de minha personalidade; que até então, jamais fizera parte dos meus planos.  Nesta época, imagino o quanto minha filha deve ter se sentindo sozinha, enquanto o pai, por medo de encará-la e não saber o que dizer, nem o que fazer da vida, fosse obrigado a admitir seu fracasso como homem.  Estava obcecado por querer esquecer o quanto um dia tinha sido perfeito a minha vida; e me atirava cada vez mais fundo, aos mais pervertidos desejos, com todo tipo de mulher que aceitasse participar de minhas fantasias autodestrutivas, dentro ou fora da prostituição.  A gota d'água, que me fez começar a emergir desse pesadelo, foi quando cheguei em casa inteiramente embriagado, com uma dessas mulheres, violando o único santuário de decência e amor próprio, que ainda me restava.  Nesse dia, expus minha filha a uma sombria realidade, que ela não merecia conhecer.  Na manhã seguinte, sóbrio e coberto de vergonha, a chamei para conversar e prometi com todas as minhas forças, nunca mais abandoná-la e humildemente implorei por sua ajuda.
- Quantos anos ela tinha, quando conversaram sobre este pacto de confiança ?
- Quatorze para quinze anos.  Já era uma mocinha.  O rosto e o corpo porém, já guardavam uma impressionante semelhança com a mãe.  Quando a olhei neste dia, era como se tivesse voltado no tempo, quando cortejava minha mulher, assim que nos conhecemos na adolescência.
- E a fidelidade a este pacto de amor, fez com que conseguisse vencer a obsessão por todos os seus vícios.
- De certa forma, sim !  É claro que as coisas não desaparecem de uma hora para outra, por encanto; mas eu nunca mais deixei de ter tempo para a minha filha, dedicando-me a ampará-la e orientá-la, mesmo quando ainda lutava por me desvencilhar de certas amarras, que ainda me ligavam aquela vida clandestina.  Passando agora, mais tempo perto dela, descobri o quanto sentiu minha falta e o quanto permiti, que o mundo a machucasse.
- Foi quando descobriu sobre a violência que ela sofreu ?
- Exatamente.  Decidi então largar tudo na cidade grande e me mudar com Ângela para esta casa, como uma forma de retiro espiritual, para que pudéssemos renascer mais fortes e unidos de todo sofrimento que vivenciamos.  Providenciei então, a vinda de dona Leonora para cá.  Na infância de minha esposa ela tinha sido sua babá, veja só !  E sempre me falou com tanto carinho da saudade que sentia dela, apesar de tantos anos depois ainda se falarem por telefone ou se visitarem esporadicamente; que me veio a ideia de trazê-la para o convívio de minha filha; resgatando um certo toque familiar, se é que me entende.
- Claro.  E de certa forma, ela voltou a compor simbolicamente aquele triângulo afetivo, como uma espécie de dèja vu, não é mesmo ?
- Tem razão.  E foi a melhor coisa que poderia acontecer.  Houve um certo isolamento voluntário, para vivermos uma modalidade de entrosamento muito particular.  Nos tornamos extremamente seletivos em relação às pessoas e com isso, ficávamos protegidos de possíveis ameaças externas.
- Estas "ameaças" a que se refere
- Por que não ?  O mundo aí fora, não possui mais o lirismo boêmio de nossa época.  É violento, impiedoso e morbidamente individualista.  Sabe o que penso às vezes, Victor ?  Foi um erro antropológico afastar da herança cultural, a responsabilidade dos pais, por iniciarem sexualmente suas filhas.  A maioria dos traumas que elas acabam carregando para o resto de suas vidas, vem de experiências nefastas, abomináveis, com pessoas indignas de tamanha entrega emocional de corpo e alma.
- Está falando de incesto propriamente dito, ou de mera transferência afetiva ?
- Meu caro, não existiria o tabu, se não houvesse o desejo.  Um desejo que diferentes sociedades recalcaram durante séculos; mas ainda hoje, sobrevive latente, no inconsciente coletivo da humanidade.
- Como amor inibido em sua finalidade, até posso concordar; isto é, na dimensão do simbólico.  Mais do que isso, estaríamos migrando para a perversão da própria estrutura familiar.  O tabu subsiste, para preservar a célula familiar de uma completa desintegração, a partir de rivalidades passionais que surgiriam inevitavelmente, levando grupos sociais à extinção.  E estou me atendo apenas à sequela cultural; quando sabemos também dos possíveis riscos genéticos.
- O fator dos genes é bem controverso, como bem sabe.  E depois eu não falei de pais constituindo novas famílias com suas filhas; mas sim, de adultos afetuosamente conscientes da importância de prepararem sua prole, para o exercício da sexualidade com amor.  Um estranho dificilmente conseguiria combinar a experiência carnal, ao sublime ato de cuidar, daquele com quem diariamente dividiria, o maior prazer de se sentir vivo !  Em várias mitologias; entre os gregos por exemplo, o incesto era praticado sem acusação moral; assim como nas dinastias do antigo Egito, ou mesmo hoje, entre comunidades tribais ou certos espécimes do reino animal.  Aprecio a abordagem do antropólogo Lévi-Strauss, quanto a origem do tabu, classificando-o como uma descoberta feita pelos homens, para que pudessem melhorar seus negócios, fechando vantajosos acordos com outras tribos, a partir do casamento entre aldeias diferentes.  Na idade média, como também deve ser de seu conhecimento, reis e rainhas da Europa, casavam-se com primos e irmãos, para manter unificados seus reinos e fortunas.  Era comum entre os membros da real nobreza, o fato de um pai viúvo, colocar a filha no lugar de sua esposa.
- São fatos de exceção e que não raras vezes, foram o estopim de sérias convulsões sociais, num futuro próximo.  - contestou mais veementemente, o psicólogo.
- Tudo pode ser pretexto, para eclosão da brutalidade humana; especialmente a proibição de algo que buscamos satisfazer com estranhos, potencializando a magnitude racional de nossas fantasias, por não nos importarmos de verdade, com o bem estar de quem levamos para a cama.  Como jornalista, cheguei a fazer uma matéria sobre incesto, visitando áreas do interior do Brasil, onse ele seria mais comum.  Estive em determinada região, no Tocantins, onde haviam relatos de homens que iniciavam sexualmente suas filhas; visto que na cultura deles, esta seria uma "obrigação de pai".  A lenda do Boto na região, vem daí.  Surgiram assim os filhos do Boto; fruto do relacionamento inconfesso, entre pais e filhas.  A lenda fora criada para tirar a culpa desses homens e justificar a gravidez das filhas.  Poderia citar ainda muitos outros casos, que investiguei tanto no interior do Maranhão, como na região Amazônica, entre a população ribeirinha.  - insistiu em tom professoral o convicto jornalista.
- Sr. Leminscky, só posso entender o clamor de seus argumentos, ao especular sobre uma surreal mudança secular dos costumes, como a delirante tentativa de um pai superprotetor, impedir que os filhos padeçam dos inevitáveis sofrimentos da vida; que por fim só iriam fortalecê-los a fazerem escolhas menos autodestrutivas e mais sensatas no futuro.
- Não me decepcione, com uma linha de raciocínio tão estreita e conservadora.  - disparou o jornalista, alterando o tom de voz.
- Agora, me escute !  - advertiu Victor.  - Quando falamos de incesto, não podemos ignorar a linha tênue que o separa da motivação pedófila.  Ainda que nas aparências, o sexo pareça consensual, eleé resultante de uma relação desigual de poder.  O todo poderoso poder paterno, que no auge do seu narcisismo, exerce com sedutora sutileza e manipuladora bondade de intenções, um domínio psicológico sobre alguém mais inexperiente; convencendo tal pessoa a partilhar da liberdade de uma escolha, para a qual não tinha maturidade ou condições emocionais, de expressar sua recusa.
- É uma análise bastante tendenciosa, como se procurasse enquadrar todo questionamento filosófico, que ousa navegar contra a corrente, na vanguarda de valores alternativos, como um risco iminente para a sociedade.  - protestou, o jornalista.
- A maioria das pessoas que conheci,tanto particularmente como no consultório, que costumavam generalizar a delicada contextualização de conceitos polêmicos, colocando-se acima da ética das relações, banalizando a consequência de seus próprios atos, apenas pelo prazer da autoafirmação; nunca se revelaram com o passar do tempo, personalidades confiáveis.
- Estou quase me sentindo um psicopata incorrigível !  - concluiu Adriano sarcasticamente.
- E geralmente estas mesmas pessoas, buscavam uma obstinada classificação para si mesmas, a fim de que pudessem contestá-las, para não se sentirem tão desgarradas do rebanho, que ambicionavam controlar.
Um insustentável silêncio; tenso, constrangedor, parecia pesar sobre os ombros daqueles dois homens.  No entanto, este fora quebrado casuisticamente, pela inesperada chegada da governanta, trazendo cordialmente, ainda que atrasado, o cafezinho que deixara de servir, ao final do almoço.
- Espero não estar interrompendo algum assunto importante.  Mas quando o debate é fértil, a cafeína nos deixa mais alertas.  - comento dona Leonora, simpaticamente.
Adriano, esboçando uma reação zombeteira, após um momentâneo transe provocado por uma rivalidade contida, não resistiu ao comentário.
- Sirva o cafezinho apenas para nosso hóspede. Já produzi adrenalina suficiente, capaz de provocar uma inoportuna dor de cabeça.  Se me dão licença ...  - despediu-se, erguendo-se da poltrona, imbuído de calculista arrogância.
Victor inclinou-se para frente e descansando o queixo sobre a segura firmeza da bengala, desviou o olhar, lamentando tardiamente pelo tempestuoso rumo daquela conversa.

A tarde arrastou-se numa interminável monotonia.  Victor repousava em seu quarto, tentando concentrar-se em um dos livros que pegara emprestado do escritório do jornalista; mas quando ouvia algum ruído diferente pelo corredor, o semblante de Ângela, vinha-lhe inevitavelmente à memória.  Talvez a lembrança roubasse sua tênue atenção da leitura, pelo fato incomum, de já ter anoitecido e a jovem nem sequer ter feito uma nova visita; fosse para saber de sua saúde ou mesmo inteirar-se sobre os rumos da polêmica conversa com seu pai.  A possibilidade de que ela estivesse solidária a uma última impressão demasiadamente intolerante, que Leminscky certamente construíra a seu respeito, deixava Victor inseguro, frente a um possível distanciamento de Ângela, para o qual não se sentia preparado, depois de chegar tão perto de conquistá-la.
Ouviu passos em direção à porta e imediatamente empertigou-se na cama, moldando o travesseiro às costas, enquanto abandonava o livro, displicentemente sobre o colchão.  Mas logo a esperança converteu-se em decepção, ao deparar com a figura austera, polidamente simpática de dona Leonora.  Ela trazia uma grande bandeja portando uma sopa bem quente, acompanhada de uma pequena travessa com torradas.
- Ainda bem que vi as luzes acesas.  Detestaria ter de acordá-lo.  Como o jantar não é hábito formal nesta casa, ficando à escolha de cada um; resolvi preparar um saboroso caldo verde.  Afinal, a noite promete ser bem fria.
- Obrigado.  A surpresa é muito bem vinda.  Teria ficado ainda melhor, se acompanhada pela gentil presença de minha mais recente amiga ...
- Dona Ângela ?
- Claro que sim !
- Ela se recolheu por toda a tarde.  Ainda agora passei pelo seu quarto e as luzes já estavam apagadas.  Às vezes ela gosta de ficar quietinha no seu canto, como se o quarto fosse uma espécie de portal, para um outro mundo bem particular.  Resquícios da adolescência; o senhor entende.
- Posso entender, mas não deixo de lamentar.  - acrescentou Victor discretamente inconformado.
- Bom apetite; com licença.  - despediu-se a governanta, no momento em que passava a bandeja, para os braços ligeiramente estendidos, de Victor.
Ouviu o barulho da porta se fechando, quando paralelamente, avistou um inusitado objeto, escondido sob a pequena travessa de torradas.  Era um envelope branco, tipicamente utilizado para cartões, anexados a embalagens de presentes.  Não estava lacrado.  Victor intrigado, retirou o papel e leu a mensagem, que dizia: "Lamento tê-lo deixado sozinho.  Mas a noite é uma criança.  Logo estaremos juntos.  Com todo o meu carinho, Ângela".
Victor não conseguiu conter o largo sorriso, que de imediato, se desenhou entre os lábios.  Direcionou o olhar para a porta do quarto, como se a excitante imaginação, já antecipasse a prazerosa imprevisibilidade do mundo real.  Cogitou em seguida, se a governanta saberia do conteúdo da mensagem, perguntando-se até que ponto apoiaria a atitude de Ângela, ou simplesmente a monitoraria, a pedido da ortodoxa figura do pai.  No entanto, concluiu que toda dúvida ficaria em segundo plano, diante da providencial oportunidade de ter aquela fascinante mulher novamente ao seu alcance.
Deliciara-se com a refeição, surpreso pelo renovado apetite.  Passado alguns minutos colocara a bandeja de lado, voltando-se então, para o prosseguimento da leitura.  Aos poucos, começava a sentir as pálpebras pesadas, ensaiando seu descanso, até fecharem em definitivo a sonolência.  Devem ter transcorrido algumas horas, até que o psicólogo acordasse por si mesmo, experimentando uma sensação desagradável em sua nuca, pela desajeitada posição em que dormira.  O livro estava caído sobre o colo e a luz do quarto ofuscava-lhe momentaneamente a visão.  Olhou para o relógio de pulso, preocupando-se em como já era tarde da noite.  Será que Ângela chegou e vendo-o adormecido, desistiu de acordá-lo ?  Não fazia sentido.  Os olhos já se adaptavam a luminosidade ambiente, quando manteve-se em silêncio, ansiando por ouvir alguma aproximação pelo corredor.  Resolvera então, levantar-se cautelosamente, buscando a bengala encostada na parede, ao lado cama.  Caminhou em passos largos até a porta, aprovando o bom desempenho dos movimentos de sua perna, ao experienciar um incômodo bastante reduzido.  Abrindo-a, começou a transitar com lentidão pelo corredor, palidamente  iluminado, enquanto passava pela porta de dois outros aposentos; avistando logo a frente uma última porta ao fundo, que chamou sua atenção.  Um fino feixe de luz, ligeiramente avermelhada, projetava-se parcialmente por debaixo dela, avançando alguns centímetros pelo piso do corredor.  Victor aproximou-se, ficando surpreso por outro detalhe um tanto peculiar.  A porta, que ao longe parecia trancada, demonstrava agora, estar apenas sutilmente encostada.  Ouviu alguns sons, como murmúrios, seguidos por respirações contidamente ofegantes.  Esticou a mão, hesitando por alguns segundos.  Mas um atordoante pressentimento provocou-lhe um recorte amargurado entre os lábios, que pareciam prensar-se involuntariamente, resistindo a uma incompatível expectativa.  Olhar fixo, na cautelosa precisão de seus dedos, tocou levemente a maçaneta, empurrando a porta o suficiente para lateralizar-lhe a visão, expondo-o para algo, que indignava seu testemunho.
Era uma cama de casal, invadida pela rubra claridade de uma luminária instalada no alto da parede, pouco acima do leito.  Um sinuoso corpo de mulher, contorcia-se lânguidamente, entregue por inteiro, ao impulsivo bailado erótico sobre a pélvis de seu parceiro, limitando-o a acompanhar em coadjuvante sincronia, o ritmo daquele cavalgar.  As mãos dele, adornando-lhe os seios, deleitavam-se numa massagem suavemente ansiosa, reverenciando aquela nudez quase escultórica,  buscando na ousadia de cada toque, a efêmera eternidade do êxtase.  Ela inclinou o rosto para trás e depois para o lado, antes de levar os dedos à boca deslizando-o tremulamente pelos lábios, como se apesar de toda a entrega ao desejo, uma parte da consciência, buscasse num lampejo de controle, concentrar em prolongados gemidos, um arrebatador grito de prazer.
Nesse instante, a fisionomia de Ângela, tornou-se nítida ao olhar perplexo e paralisado de Victor.  Quando ela deitou o corpo, abraçando carinhosamente o parceiro, a ausência de sua verticalidade, apenas confirmou para Victor, a cena receiosamente esperada.  Ângela e o pai eram amantes