quarta-feira, 28 de março de 2018

Contos da Madrugada apresenta "O AMIGO DOS SONHOS" - Um Conto de Páscoa




I


Os lábios do menino, estranharam a fria superfície da pele.  Aquela não podia ser a face de seu avô.  Quando sentia o abraço dele todas as manhãs, antes de ir para a escola; ou mesmo, o pouso brando das mãos calejadas e protetoras em torno de seu rosto antes de adormecer, como se abençoasse os sonhos que estavam por vir; jamais identificou algo tão impessoal, como o contato corporal daquele momento.  Era seu querido avô deitado naquela cama, mas ao mesmo tempo, a chama acolhedora que marcara a história daquela convivência não ardia mais ali; naquela casa, naquele quarto.
Vovô Arthur era um senhor de baixa estatura, barba volumosa e grisalha, com uma generosa barriguinha, onde o neto gostava de se recostar todo final de tarde, para contar as aventuras que vivera no colégio.  A voz docemente grave e melodiosa do avô, lhe dava conselhos, vez por outra também conferia um belo e justo "puxão de orelhas", enquanto o menino permanecia ali, com a cabeça afundada naquela gordurinha gostosa, onde adormecera por várias ocasiões, ao som daquele sábio e atencioso travesseiro falante.  Mas essas imagens agora, viveriam apenas no passado; acessadas pela saudade, sempre que o mundo se mostrasse tão gelado e solitário, quanto a pele do rosto, que os lábios hesitantes do menino tocaram, num último beijo de despedida.
- Venha Pedro...  Vovô agora está com Deus.  - disse a mãe, abraçando o filho pelos ombros, induzindo afetuosamente a se distanciar da cama, a fim de conduzi-lo para fora do quarto, onde os parentes mais próximos permaneceriam, tomando as providências de praxe a fim de deixar o corpo em condições de ser removido, com destino ao velório.
Pedro obedeceu prontamente ao afastamento; sem resistência, apesar dos olhos avermelhados por tantas lágrimas silenciosas derramadas pelo avô amigo, cujo calor humano há muito abandonara a quietude daquele quarto, transformando um corpo familiar em uma presença ao mesmo tempo, irreconhecível.
No corredor que dava acesso a sala de estar, a mãe se ajoelhou diante do filho, durante o breve instante em que ficaram sozinhos; e fitando Pedro dentro dos olhos, visivelmente emocionado, passou as mãos pelas lágrimas que ainda serpenteavam o rosto do menino, enxugando parte da dor que ainda lhe brotava da alma.
- Meu querido, agora somos só nós dois.  Mas eu prometo estar sempre perto de você.  Sei o quanto o vovô Arthur gostava da sua companhia.  E o amor do tamanho do mundo que você sentia por ele...  No entanto, chega uma hora em que todos vamos partir.  É o chamado de Deus.  Ele foi um pai maravilhoso pra mim e um avô extraordinário para você.  Tenho a dimensão do quanto você o ama!  Mas vamos estar juntos cada vez mais, tentando ser felizes em homenagem a ele; que sempre quis o nosso bem.  Pode contar comigo, meu filho.  Confia em mim?
- Confio, mãe.  Eu te amo.
Os dois se abraçam fortemente em meio a penumbra daquele estreito corredor.

Os dias mais difíceis e amargos se sucediam em ritmo acelerado, como se o tempo emocional de cada um, que conviveu com a personalidade solar do Vô Arthur, se encarregasse de virar aleatoriamente aquelas páginas de sofrimento, permitindo que a vida plena retomasse seu enredo, repleta de sonhos inacabados, aguardando por serem acalentados, retomados e realizados.
Quando a mãe de Pedro fazia uma arrumação no armário de roupas de Vô Arthur, selecionando algumas peças para serem doadas; teve a sensação de que algum objeto muito peculiar, característico do perfil habitual de seu pai, fazia falta, em meio a tantos objetos pessoais.  Olhou por todos os cantos, tendo agora a certeza de que o instrumento ausente, havia sido retirado, sem o conhecimento dela.  Serenamente, terminou de arrumar as roupas para doação, numa espaçosa e velha mala de viagem; e logo depois seguiu para o quarto de seu filho.  Era uma manhã de sábado e o menino Pedro, por não ter escola, ficava na cama até mais tarde, assistindo seu canal favorito de desenhos animados.
- Pedro, você por acaso pegou alguma coisa do quarto do vovô e esqueceu de devolver?
Pedro, aparentemente hipnotizado diante da televisão, parecia olhar para o frenético fluxo de imagens, mais como uma forma de buscar um foco, uma zona de conforto para o olhar, enquanto seus verdadeiros pensamentos, viajavam para muito longe dali.  Isto fez com que nem se desse conta, da repentina presença da mãe a lhe perguntar qualquer coisa.
- Terra chamando Pedro!  "Houston temos um problema"...  - brincou a mãe, alterando a voz de forma bem humorada, para chamar a atenção dele.
- Oi, mãe; falou comigo?
- Retomando a transmissão com o astronauta que vivia no mundo da Lua!  Você viu aquela velha bengala do seu avô?
- Por que, mãe?
- Fiquei curiosa.  Estava arrumando as coisas dele e dei por falta.
- Posso ficar com ela?
- Não precisava tê-la pego, sem me dizer nada...  Eu mesma a teria guardado pra você, se tem um carinho tão especial por esta lembrança.
- É que por ser uma bengala bonita, apesar de antiga, pensei que alguém da família fosse querer ficar com ela.  No dia mesmo que o vovô morreu, eu a escondi aqui no quarto, junto com meus brinquedos.  Ela significa muito pra mim.  Sempre que me divertia com ele ou mesmo o levava até a cama, colocando o meu cansado Vô pra dormir; ela estava lá, do lado dele.  Parecia até coisa de super herói!  Imaginá-lo sem a bengala, era como separar o martelo do Poderoso Thor; ou o escudo do Capitão América.  Vovô sempre será o meu Vingador favorito.
- Eu sei, meu filho.  Desculpa.  Eu não perguntei com a intenção de criticar você.  É que ela também tem um valor sentimental pra mim.  E no fundo, temia que algum parente a tivesse levado desta casa.  Fico tranquila, por saber que está em boas mãos.  Agora, mamãe vai cuidar da casa.  Sábado, dia de faxina!  Vou deixar você com sua TV; mas antes vou trazer aquele café da manhã, na cama para o meu príncipe.
- Não, mãe!  Desculpa, eu vou tomar café com você lá embaixo.
- Nada disso.  Também acordei tarde.  Mesmo super atrasada para a arrumação, sair da rotina às vezes é sempre bom.  Mas não vá se acostumar com a mordomia.  É só por hoje!
- Tá bom, mãe.  Valeu!  - concordou Pedro, esboçando depois de longo tempo, aquele seu largo sorriso, capaz de fazer sua mãe ganhar o dia.
Só que tal atmosfera, de convívio harmonioso, não conseguiu se manter intocável aos dissabores da consciência real de uma perda familiar.  No início, para o "coração apertado"de Pedro, a sensação ilusória era de que o avô havia tirado umas férias, ou tivesse sido vítima de uma fictícia abdução alienígena, permanecendo por alguns dias numa galáxia distante, até ser libertado para retornar ao convívio entre os humanos.  Pedro mantinha-se anestesiado por uma espécie de mecanismo psicológico compensatório, capaz de aplacar a intensidade dolorosa daquela saudade, substituindo-a pela vã esperança inconsciente de que tudo não passasse de um sonho ruim, do qual mais cedo ou mais tarde, conseguisse despertar.  Adultos também passam por essa etapa quase delirante do luto, mas tem a capacidade de se recompor com maior rapidez pela maturidade conquistada ao longo da experiência cotidiana, com perdas e ganhos.  Porém, para um pré-adolescente de onze anos de idade, exigir tamanha resistência emocional, significaria superestimar seu poder de adaptação à realidades imprevisíveis.
E como já era de se esperar, chegou a vez de Pedro estabelecer contato com a verdade irremediável da perda.  E não foi nada fácil, para ele e para sua mãe.  A real dimensão dos fatos se tornou mais clara, quando sua mãe, dona Regina, foi notificada pela orientadora educacional, de que precisava comparecer ao colégio, para uma breve conversa sobre o acompanhamento do rendimento cognitivo e da postura comportamental de seu filho.
- Dona Regina?  Prazer em conhecê-la.  Sou Marília, do serviço de orientação vocacional.  Sente-se, por favor.  Fique à vontade.
A mãe de Pedro hesitou por alguns segundos em cumprimentá-la num simples aperto de mãos, demorando mais ainda, em sentar diante da mesa daquela profissional.
- Aceita um café, uma água...  - complementou Marília, antes de insistir no pedido para que sentasse; observando o olhar desconfiado daquela mãe, que já imaginava previamente, estarem cometendo alguma injustiça com o seu filho.
- Pode ser uma água, obrigada.
Marília assentiu com um sorriso, dirigindo-se até o garrafão de água mineral, situado a poucos metros; a fim de servir sua convidada.  Ao entregar o copo de água bem gelada, apontou com a outra mão para a poltrona, relembrando o seu pedido.
- Vamos sentar?  Tenho certeza de que está curiosa pelo fato de tê-la chamado.  Me coloco à disposição a fim de esclarecer todas as suas dúvidas.
Uma vez acomodadas em seus respectivos lugares, Regina foi logo quebrando os constrangedores segundos de silêncio.
- Sinceramente, não vejo motivo para estar aqui.  Meu filho estuda nessa instituição, desde a pré-escola; e nunca fui chamada para conversar sobre qualquer conduta inapropriada de sua parte.  Acho que tudo não passa de um equívoco.
- Mãe, lamento discordar.  
- Olha, antes de continuar, vamos parar com este jargão impessoal, que de uma hora para outra, todas as escolas passaram a adorar reproduzir.  Não sou "mãe"para você.  Sou dona Regina, ou simplesmente Regina.  Torna a conversa, menos esquisita, não acha?
- Como preferir...  Regina.  - pondera a orientadora, evitando cair na ansiosa armadilha, de qualquer polêmica desnecessária.
Ao longo da exposição dos acontecimentos relativamente recentes, que datavam de um mês após o falecimento do avô do menino; a orientadora traçou o perfil de um Pedro diferente, daquele que Regina conhecia dentro de casa.  Irritado, intolerante, "pavio curto", em relação às mínimas implicâncias e banais provocações, tão comuns entre jovens da mesma idade; Pedro quando não estava discutindo grosseiramente com os colegas, acabava se envolvendo em brigas na hora do recreio ou mesmo, durante as aulas de educação física, quando não suportava perder uma "dividida" com o colega no futebol, ou receber uma falta, exatamente quando partia como centro avante, na tentativa de fazer o gol.  Em qualquer outro esporte, também sempre acabava estressado e igualmente estressando todos ao seu redor, demonstrando sua baixa tolerância a frustrações.  O rendimento intelectual também vinha bastante irregular.  Pedro era um aluno destacado apenas em suas matérias favoritas, como História e Ciências.  Ultimamente não conseguia se concentrar de forma satisfatória nas avaliações mais comuns em sala de aula.  E no restante das matérias, onde antes apresentava um desempenho regular, demonstrando interesse em melhorar, agora se mostrava disperso, desinteressado.
Regina, numa involuntária postura defensiva, tentava se justificar, alegando que por mais que tentasse, quando chegava em casa, suprir o tempo de ausência durante o dia, devido a atividade profissional como advogada; pressentia que o filho procurava esconder seu grau de insatisfação, provavelmente para protegê-la da própria revolta.  E evitava falar sobre o cotidiano escolar.  O ofício na advocacia absorvia muito de seu tempo; e agora ciente da natureza dos problemas enfrentados por seu filho, trazia unicamente para si, a culpa por seu desamparo.
Marília revela que a hostilidade demonstrada por Regina, no início daquela troca de idéias era uma defesa contra sua cobrança interior, e se predispõe a ter sempre um horário em sua agenda, para que juntas pudessem, cada uma no seu papel, auxiliar no crescimento didático e humano de Pedro; favorecendo o retorno do dedicado aprendiz que sempre provou ser.  Regina agradece pela escuta atenciosa, prometendo procurá-la no decorrer desta fase tão delicada, que os dois atravessavam.  Ao sair da sala, respira fundo, enxugando as lágrimas que marejavam discretamente seus olhos; imaginando o quanto seria difícil conversar com Pedro sobre o assunto.  Mas isto seria só à noite quando voltasse para casa. Tinha todo um dia de trabalho árduo à sua espera; embora o coração e a mente, desejassem seguir de imediato ao encontro de Pedro, para dizer o quanto o amava. 
As horas passaram voando. Regina teve uma segunda-feira das mais agitadas no escritório. Clientes novos chegando e precisando administrar com a maior prudência, os casos jurídicos já em andamento. Quando no final da tarde, pegou o carro na garagem do edifício comercial, partindo do Centro da cidade em direção a sua casa, sabia que teria uma conversa bem delicada com Pedro, embora não fizesse ideia da situação inusitada que encontraria no próprio lar. Mal a chave girava na fechadura da porta do apartamento, Regina já ouvia do corredor um barulho de vozes estranhas, vindas da sala de estar. Ao entrar, visualizou a madrinha de Pedro sentada em silêncio no sofá, como mera observadora passiva de uma provável discussão entre pai e filho, tal a semelhança física entre os dois.
- Posso saber quem são vocês e o que estão fazendo na minha casa?
Enquanto o corpulento visitante, de seus quarenta e poucos anos, demonstrava ficar completamente sem graça, enquanto gesticulava para o garoto, ordenando silêncio; a madrinha de Pedro se levanta do sofá expressando alívio e consternação, misturadas em sua fisionomia, a partir da chegada da advogada.
- Ainda bem que está aqui, minha querida.  Não sabia mais o que fazer para esses dois pararem de bater boca um com o outro.
- Laura, pode ser mais clara e me explicar o que acontece aqui?  Cadê o Pedro?...
- Calma, não foi nada grave.  O senhor Antônio aqui, pai do Joca, levou ele ao pronto socorro imediatamente e o meu afilhado já medicado, está descansando lá no quarto.
- Mas que loucura é essa?  O que vocês fizeram com o meu filho?  - pergunta Regina indignada, alteando o tom da voz, tendo os olhos crispados, como os de uma leoa furiosa, defendendo a cria.
- Olha moça, fica tranquila!  Eu sei que tem toda a razão em se mostrar nervosa, mas não foi nada demais.  Rixa de garotos, numa idade onde os hormônios sempre falam mais alto.  Joca, meu filho, explica pra mãe do Pedro o que aconteceu.  E não minta pra ela, como tentou mentir pra mim, ouviu bem?  - enfatiza rispidamente.
- Tá certo, pai...  Chega de bronca; eu já entendi que agi errado.
- Querem parar com essa lavação de roupa suja entre vocês e contar o que de fato ocorreu?
- O Pedro andava muito estranho na escola.  É como se pagasse para tirar alguém do sério; toda vez que criticavam ou decepcionavam ele de algum jeito.  Esta semana, fui a bola da vez.  Depois de uma discussão na hora do intervalo, em que partiu pra cima de mim, acertando um soco que me pegou de surpresa; eu tentei revidar, mas veio aquela turma do "deixa disso"e só piorou a situação.  A gente devia ter acertado as contas naquela hora.  Isso aconteceu ontem.  Hoje, no futebol, durante a aula de educação física, eu jogava no time adversário e para evitar que ele fizesse um gol de placa no meu time, entrei com tudo na canela dele.  Quando caiu no chão, pensaram que tinha quebrado o tornozelo, mas foi só uma torção.  Sei que errei; mas tava cheio de raiva e só queria dar o troco.  Eu me arrependi e já pedi desculpas pra ele. Espero que a senhora também possa me perdoar.
- Isso mesmo, Regina.  O rapazinho se arrependeu e pediu que o pai fosse até a escola para levar o Pedro ao hospital.  Acho que ele também ficou preocupado e se arrependeu de verdade, não é Joca?  - intercedeu a madrinha de Pedro, tentando a todo custo contornar o clima tenso que pairava no ar daquela sala.
- E por que diabos Laura, a escola chamou você par acudir meu filho, quando meu celular esteve ligado o dia inteiro e não havia sequer, uma mensagem da diretora ou do Pedro, destinada para mim? Afinal de contas, sou a mãe dele!... 
Laura olhou para ela atônita, sem saber de fato o que estava acontecendo. Após alguns segundos, voltando o olhar em direção ao chão, antes de erguer novamente a  cabeça, falou quase murmurando. - Foi uma escolha do Pedro. A diretora me contou que ele implorou para que não incomodassem você no trabalho. E aí passou meu telefone, gravado no celular dele.
Regina, pensativa, aproxima-se do sofá largando displicentemente a bolsa entre as almofadas. Passando  as mãos compulsivamente pelos cabelos, alisando-os para trás, improvisa um coque, deixando a nuca descoberta a fim de amenizar a intensa transpiração, em parte provocada pela ansiedade. Voltando-se para os indesejáveis "convidados", não hesita em ser enfática. - Por favor, podem ir embora. Me deixem a sós com meu filho.
- Dona Regina, vai me desculpar, mas é desnecessário ser tão hostil conosco; para não dizer ingrata! Seu filho teve toda a ajuda de que precisou, apesar do comportamento bastante problemático.
- Problemático? Eu ouvi bem? O seu garoto quase deixa meu filho aleijado e o Pedro é que apresenta uma conduta questionável? Ele está sofrendo e muito, com a morte repentina do avô querido; seu melhor amigo! Eu também fiquei abalada, mas sou adulta; já sofri demais nessa vida e sei melhor lidar com meus lutos. Pedro é marinheiro de primeira viagem nas águas turbulentas que o destino nos reserva...Nunca teve uma presença paterna em casa. Meu pai, era todo referencial de amor masculino que possuía. Graças a Deus nunca precisei trazer meus ficantes, para a intimidade da família, fazendo de meu filho, mera cobaia afetiva, de minhas tentativas amorosas para ser feliz como mulher. Vivo para o meu trabalho e me dedico aos que realmente gostam de mim. Quem é você, na sua medíocre moral burguesa, para julgar um adolescente que mal conhece; e que só recentemente, conheceu o verdadeiro significado da palavra perda? Obrigada pelo que fizeram, mas saiam da minha casa agora!
-Não fique tão nervosa Regina; vamos conversar como pessoas sensatas. - intervém a madrinha, na tentativa de por "panos quentes"naquela atmosfera conflitante.
- O convite para se retirarem é extensivo a você, Laura. Depois conversamos. Acompanhe as visitas até a saída e tenham uma boa noite.
De forma constrangedora e silenciosa, todos finalmente se retiram; para só então, depois de fecharem a porta, ficarem murmurando seus descontentamentos pelo corredor do andar, até o elevador.
Quando chegou até o quarto de Pedro, a mãe percebeu que a porta se encontrava apenas encostada; e foi entrando de mansinho, enquanto observava o filho deitado na cama, recostado nos travesseiros, assistindo ao seu canal favorito de desenhos clássicos, que costumava acessar sempre com Vô Arthur, curtindo juntos, seus heróis. Em uma das mãos mantinha o controle remoto e na outra, segurava firmemente, mantendo encostada o colchão, a bengala tão estimada de seu avô.
- Oi, meu querido. Cheguei, chegando... - brinca dona Regina, procurando cativar a atenção de Pedro.  - Nem adianta fingir que está concentrado na tv, porque sei que ficou ligado na discussão que tivemos lá embaixo.
O tom de voz calmo, porém firme e direto da mãe, levou Pedro a desviar os olhos imediatamente da tela e ao tentar fitá-la nos olhos, não resistiu e desviou o olhar para janela, com uma expressão de culpa.
- Me perdoe, mãe.  Não queria ver você sofrendo, por minha causa.
- Mas só tem um jeito disso não acontecer.  Pare de maltratar a você mesmo, meu filho.  Como posso ficar bem, sabendo o quanto se deixa machucar, por dentro e por fora.  O quanto está infeliz.  - retruca a mãe, tendo a voz ligeiramente embargada pela emoção.
Pedro prefere silenciar, olhando para o cabo da bengala, que deslizava entre seus dedos, fitando-a como se apenas ela, fosse capaz de conhecer a dor que envenenava seu coração.
- Vovô Arthur não gostaria de vê-lo dessa forma.  Amava sua alegria, suas brincadeiras; seu jeito aventureiro de contar as façanhas do colégio; a curiosidade vibrante por sempre estar aprendendo algo novo...  Não comece a apoiar nessa bengala, toda sua fraqueza, todo medo de enfrentar uma realidade, que infelizmente não podemos mudar, meu querido.  Seu avô gostaria de nos ver apoiando um ao outro.  Por mais que não consigamos alcançar seus motivos, Deus sabe o que faz.
- Será que sabe mesmo, mãe?  E como pode ter certeza de que o vovô continua vivo em algum lugar olhando por nós?
- A fé me dá esta certeza.  Sempre fomos uma família pequena, porém muito unida pela fé.  - pondera dona Regina, olhando Pedro com estranheza.
- A fé pode trazer meu avô de volta?  Pode tirar essa raiva de dentro do meu peito?  Que Deus é esse, que não deixou conhecer o meu pai e agora tira de mim meu vô querido; meu melhor amigo?
- Pedro, vou relevar suas palavras, em razão da sua dor.  Mas pare de fazer pouco da sua fé.
- Mãe, eu não acredito nesse amor invisível, que não fala comigo, que não me dá resposta, que tira tudo de mim e fica assistindo de camarote, a bagunça que fez na nossa vida.  Acreditava sim, no vovô.  No toque carinhoso ao me acordar pela manhã; na risada das minhas besteiras; no abraço que me dava força quando ficava doente.  Vovô era bom e real pra mim.  O resto, que sempre ouvi na igreja, é como um desenho animado: antes me distraia e agora, ficou muito chato.  E o pior, é que nem posso mudar de canal.
- Tá bom Pedro, agora chega!  Já desabafou?  Deus sabe o quanto você é inocente e imaturo nas suas conclusões.  É normal na sua idade se rebelar contra tudo e contra todos.  Não vou ficar debatendo e me desgastando com você, por coisas que só o tempo fará você aprender consigo mesmo.  E sabe por que?
- "... Porque a vida é a melhor escola".  Eu já sei disso, mãe.
Dona Regina respira fundo e não consegue evitar a preocupação pelos pensamentos do filho, estampada em sua fisionomia.  - Mudando de assunto, senhor Pedro; quanto tempo o médico deu para sua recuperação?
- Tenho um atestado para três dias e uma receita que está na minha mochila.  Disse que precisaria usar muleta por alguns dias.  Mas já encontrei todo o apoio de que preciso, nesta bengala.  Se ela acompanhou Vô Arthur por tanto tempo e lhe permitia fazer tudo o que queria; por que não daria certo comigo?
- Tudo bem, meu filho.  Por enquanto vou permitir.  Marcarei com um médico especialista pelo plano de saúde.  Se ele também insistir na recomendação das muletas, você vai seguir a prescrição dele.  Estamos entendidos?
- Sem a bengala, nada feito.  - enfatiza Pedro, denunciando uma certa prepotência na voz, como se desafiasse a autoridade de sua mãe.  Isto a incomodou; mas preferiu evitar um conflito desnecessário e desgastante com ele.
- Antes que me esqueça, você comeu alguma coisa?
- A madrinha fez um lanche pra mim.  Está tudo bem.  Não tô a fim de jantar.
- Como quiser.  Tenha uma boa noite, meu filho.  Sonhos de luz pra você.
- Boa noite mãe.  E desculpe pelo susto.
Regina sorri, um tanto desconcertada e apagando a luz, se retira de cabeça baixa, sem conseguir disfarçar a tristeza.
Pedro assisti mais um pouco do desenho animado e pouco depois, num suspiro entediado, usando o controle remoto, desliga a televisão.
Ao fechar os olhos, procura relaxar, pensando nos novos games que iria baixar para o celular na manhã seguinte; assim como nas meninas que durante a educação física, ficavam "paquerando"ele.  Que palavra antiga!  Mas era a favorita do vovô, quando contava suas aventuras românticas durante a juventude; e de como conheceu ainda muito cedo, aquela que viria a ser a mulher de sua vida: vovó Magdalena; de quem foi viúvo por muitos anos.  Lá estava Pedro a ter o avô novamente em seus pensamentos, enquanto o sono não dava o menor sinal de chegada.  Quando impaciente, virou para o outro lado da cama, ouviu uma voz rouca, baixinha, muito familiar, chamá-lo pelo nome.
- Pedro! Pedroca... Não adianta forçar o sono, quando no fundo, não se quer dormir!
O menino abre os olhos assustado, erguendo-se na cama, a vasculhar com os olhos, em meio à escuridão do quarto, por algum vulto que pudesse identificar.
- Quem está aí? - pergunta Pedro, estendendo a mão até o criado mudo, para acender o abajur. Mas a penumbra criada pela meia luz, nada contribui na identificação de quem mais estaria naquele quarto. Pega então, no mesmo móvel, o aparelho celular, acionando o foco de sua potente lanterna.
- Até que a lanterninha é forte mesmo. Pena que mesmo sob a luz do sol, só enxergamos aquilo que estamos preparados para ver! Se o som da minha voz não é suficiente, vou facilitar as coisas, fazendo uma aparição no estilo hollywoodiano.
De repente, surgiu levitando da beira da cama, numa exibição soberana, a bengala do Vô Arthur. E permaneceu suspensa no ar, como num número típico de ilusionismo. O feixe de luz da lanterna estremeceu, antes do celular cair das mãos de Pedro sobre a cama. O menino sentiu uma tremedeira instintiva, percorrer todo seu corpo; mas em poucos segundos, já esfregava os olhos para apreciar mais de perto o fenômeno, torcendo para que aquilo não fosse uma alucinação.
- Achou!... Meu garoto esperto. Assim é que eu gosto.
Ainda desconfiado, Pedro resolveu interpelar mais agressivamente a estranha manifestação sobrenatural. - Quem é você? Por que está imitando a voz do meu avô? Vai assustar outro no inferno, coisa ruim!
- Epa, calma aí! Anda vendo muito filme de terror. Antes de chamar um exorcista, confie na sua intuição. É o seu vovô! Em aura e cara de pau! Posso não ter vindo da cobertura, acima das nuvens; mas também não vim do poço do elevador do capeta! Digamos que dei uma escapadinha do engarrafamento de candidatos à eternidade, para visitar meu neto do coração! Que anda bastante confuso e inconformado, ultimamente.
- É você mesmo?... Que parada maluca. Estou conversando com uma bengala!...
- Grande coisa! Os vivos conversam com outros vivos, que na maioria das vezes são tão surdos e inanimados, quanto qualquer objeto; e não acham que estão enlouquecendo. Senão vejamos: as pessoas falam com políticos e seus apelos entram por um ouvido e saem pelo outro, enquanto estes,  fingem escutar as  necessidades do povo. Gente desse tipo, são como bengalas surdas, insensíveis; encostadas e sem atitude, nos mais variados ambientes de trabalho, nas mais variadas famílias. Nossa bengala é diferente Pedro. Ela é encantada pela história que nós vivemos. E que ainda não terminou.
Pedro esfregou novamente os olhos, para se certificar de que não estava sonhando de olhos abertos e ao perceber que a situação permanecia a mesma; esboçou um largo sorriso; voltando a se recostar na cama entusiasmado; ao mesmo tempo em que a bengala terminava seu número de levitação, pousando suavemente sobre o seu colo. Pedro pode sentir pela superfície de madeira envernizada, um tipo incomum de calor, bem familiar, semelhante ao calor das mãos do avô, quando as colocava sobre sua testa antes de dormir, abençoando seus sonhos.
- E aí, podemos continuar o papo ou ainda acha que sou um poltergeist  maluco, que veio perturbar seu juízo?
O menino dá uma risada emocionada, acolhendo o objeto entre seus braços, agora sem o menor receio; parando de se defender de uma realidade surpreendente e inevitável.
- Desculpa, vô; mas da próxima vez escolhe uma forma menos esquisita de se comunicar comigo.
 - Esquisita por que? Foi você que a escolheu, para me representar simbolicamente, na sua memória. Através dessa saudade pura, transferida para ela, você criou a ponte metafísica ideal, para que eu pudesse voltar e ajudá-lo a enfrentar todos os problemas criados pela minha repentina ausência.
- Quer dizer, que de agora em diante, ficaremos sempre juntos?Mal posso esperar para contar tudo à mamãe.
- Calma, alto lá! As coisas não são tão simples quanto parecem.
_ Como assim, Vô Arthur? Ela também sente muitas saudades.
- Mas lamentavelmente já se encontra enraizada no mundo dos adultos. Um mundo perigoso, pouco confiável. Amo vocês; mas minha filha tem grande dificuldade hoje em dia, para ver outras possibilidades de ser e de existir. Adultos se tornam seres muito limitados pela lógica racional, reducionista. Não tem a facilidade de duvidar e se aventurar por outras possibilidades de interagir com diferentes mundos, como crianças de livre pensamento, como você. Consegue entender? A primeira coisa que minha filha vai fazer se contar uma história dessas, é marcar uma consulta pra você com um psiquiatra, que certamente vai começar a entupi-lo de remédios. E eu não quero meu neto querido, com aquela cara de rivotril ambulante. Promete que vai manter segredo?
- Ok; se acha melhor assim, pode contar comigo.
- Seu avô sabe das coisas! E depois precisamos de tranquilidade para fazermos nossas viagens, sem nenhuma intromissão. Afinal, não sei por quanto tempo vou conseguir me manter neste plano dimensional, sem levantar suspeitas.
- O senhor fugiu de onde se encontrava, por minha causa?
- Digamos que foi uma retirada estratégica, aproveitando do mágico canal afetivo, criado pela força genuína de seus sentimentos. Mas não vamos perder tempo com justificativas. O importante é o fato de poder estar aqui e ser seu guia numa aventura inesquecível. Vou dividir com você uns segredinhos muito bons, que farão você ver a vida com outros olhos.
- Tá difícil vovô! Ainda mais nesse estado em que fiquei agora. Se conseguir jogar futebol tão cedo. Nem soltar pipa ou correr por aí, como sempre gostei. Vou ficar igualzinho ao senhor nos últimos anos. Escravo de uma bengala, que terei de carregar para cima e para baixo; e que só se torna nossa melhor amiga, quando ficamos doentes. Acabei gostando dela, porque me fazia lembrar dos momentos divertidos que passávamos juntos. Ou vai dizer que também já não estava sem paciência, por depender tanto dela?
- Confesso que no início, sim! Mas depois, acabou se tornando uma extensão do meu corpo. Quando fui me acostumando com ela, já era agradecido por manejá-la com habilidade suficiente, para acompanhar o ritmo de vida do meu neto querido. Agora, a boa notícia que trago, é o fato de poder transformar estes próximos dias tão tediosos da sua recuperação, numa viagem sem limites, por todas as possibilidades, que o futuro lhe reserva.
- Valeu pela força, vovô; mas não acredito nisso.
- Ah, não?! Pois vamos começar agora! Feche os olhos e tente dormir.
_ Só isso? De que forma uma boa noite de sono, pode mudar a minha vida?
_ Confia em mim! Tente se lembrar de um dia bem legal que passamos juntos e deixa o sono chegar de mansinho. O resto é por minha conta. Está disposto a embarcar nessa viagem?
_ Que viagem?
_ Uma viagem sem fronteiras, pelo mundo dos sonhos!
Pedro, curioso, obedeceu sem pestanejar. De repente, lá estavam eles, num encontro de Dança de Salão, o qual Vô Arthur adorava frequentar, muito tempo antes de vir a enfrentar o problema da artrose do joelho esquerdo. A confraternização reunia não unicamente pessoas da terceira idade, mas famílias inteiras, com integrantes de todas as idades, ali presentes no intuito de prestigiar seus avós "pés de valsa". Na verdade após a exibição inicial dos dançarinos donos da festa, o salão se transformava democraticamente numa espaçosa  pista de dança, para todos os convidados; bailando ao som de grandes sucessos de um passado estiloso, constantemente revisitado pelas mídias atuais. Dance music, MPB, Samba de gafieira, Jazz, Boleros; tinha para todos os gostos das mais variadas gerações. Pedro em determinado instante, notou que naquela lembrança prazerosa que revisitava, pulsavam acontecimentos novos, que não reconhecia como familiares. Era o mesmo conteúdo , acrescido de detalhes inusitados. Vô Arthur o retirava da mesa onde estava, em companhia de sua mãe, alegando que iria ensiná-lo a dançar como gente grande. Portava na outra mão, a ilustre bengala: fato que não correspondia à realidade dele, naquela época. Apesar de estranhar a situação, Pedro não hesita em participar da brincadeira. Antes de começar a lhe ensinar os passos básicos, acompanhando um clássico do Jazz, de autoria dos famosos Irmãos Gershwin, Arthur apresenta ao menino um notável dançarino, com quem o neto iria agora, se apresentar. Ao entregar a bengala a Pedro, um fantástico fenômeno acontece: o objeto se transforma numa bengala de gala, dessas que se destacam em musicais de Hollywood; e toda a roupa comum do menino, acompanha o estilo clássico da bengala, convertendo-se num figurino elegante, com direito a fraque e cartola, como se estivesse na cena de um filme dos anos 30. 
- Meu amigo quer você seguindo seus passos. Não pude dizer não para o senhor Fred Astaire!
- Peraí, Vô; eu nem sei como começar. - reluta Pedro inseguro e com toda razão.
- Deixe a magia do maior bailarino de todos os tempos , inspirar você. O resto é só diversão, meu garoto. - garante Arthur, demonstrando uma confiança contagiante.
Fred Astaire desliza em passos ousados e movimentos sinuosos pelo centro do salão. Sua dança de coreografias arrebatadoras, pontuadas pelo sincronismo do sapateado, com o ritmo da canção, que a todos embalava; logo faz a festa parar, a fim de que todos, abrindo um meio círculo em torno dele, apreciem sua performance. Depois de alguns segundos de aplausos efusivos da multidão, Fred acena para Pedro, seu jovem aprendiz, indicando por gestos, que siga seus próximos movimentos. O menino se entrega ao apelo da dança e magicamente se percebe executando com absoluta destreza todos os passos do exímio dançarino, percebendo um detalhe igualmente surpreendente, ao ouvir a poética sonoridade que vinha de seu calçado. Ele também estava sapateando. A partir daí, o grande astro dos musicais de cinema e seu fiel parceiro de dança, executam um show único, de vigoroso talento e alegria; arrancando mais aplausos do público, ao encerrarem sua apresentação, sintonizados harmoniosamente, aos últimos acordes da tradicional orquestra que os acompanhava.
Ao final do número, Dona Regina não se contém de orgulho e corre até o filho para abraçá-lo na frente de todos. Pedro retribui emocionado, procurando o avô, e meio às duplas de dança, que já retornavam à pista, quando a próxima musica já surgia. Nesse interim, Vô Arthur a certa distância, parecia agradecer à Fred Astaire pelo momento tão especial por ele concedido ao seu neto, trocando apertos de mão e falas murmuradas, como se confidenciassem assuntos restritos à eles. Pedro se lembrou do quanto o avô era esperto, para contornar obstáculos e levar as pessoas a compactuarem de seus sonhos, mesmo quando nada ganhavam com isso. Apenas a satisfação de vê-lo realizado. Isto era um dom, que ao que tudo indica, ele não desperdiçou por aqui. Quando os dois se dão conta de que eram observados pelo curioso Pedro, Fred Astaire lhe dirige um sorriso e um último aceno de despedida, desaparecendo na multidão. Arthur se aproxima rapidamente,  a fim de parabenizar o neto. Ao retribuir o abraço, expressando um largo sorriso de alegria, Pedro percebe que a bengala não mais pesava em suas mãos e desaparecia juntamente com o seu figurino e a última que tivera de Fred Astaire.  Vô Arthur presencia a expressão atônita de seu neto e sorrindo entre os lábios, se antecipa às dúvidas de Pedro.
- Agora você sabe meu querido, que no mundo dos sonhos, não existe limites.  Uma simples bengala pode ser bem mais o que esperamos dela.  Da mesma forma que os objetos não tem um único destino, nós também não.  Podemos ser e estar, onde nossa imaginação desejar.  Quem faz do seu caminho um paraíso de possibilidades ou um inferno de limitações é a sua própria consciência.  Nunca se esqueça disso, meu garoto!
E a noite festiva segue em grande estilo até o seu término; quando uma chuva torrencial, imprevisível, provoca a falta de luz no salão e boa parte dos convidados, já começavam a se despedir, à luz de velas; prontos para voltarem às suas casas.  Felizmente a falta de energia dura pouco e logo as luzes do esvaziado salão se acendem novamente.  Pedro não chega a estranhar esta lembrança.  De fato, caiu uma chuvarada ao final daquele dia e eles tiveram que esperar um bom tempo, protegidos debaixo da marquise do salão de festas para que Vô Arthur buscasse o carro num estacionamento relativamente distante daquele local.  Ficaram esperando o aguaceiro passar, uma vez que ninguém levara guarda-chuva.  Durante esta passagem de sua memória, outro novo elemento vinha se inserir na história, de uma hora para outra, acrescentando situações imprevistas, ao curso do que realmente aconteceu.
Do outro lado da rua um casal dividindo o mesmo guarda-chuva, corria até a porta de uma residência.  O jovem deixa a moça na porta de casa e antes dela entrar, se despede com um beijo tão acanhado quanto repentino, entrando rapidamente em sua casa.  O rapaz, surpreso, retorna para rua, esquecendo de abrir o guarda-chuva enquanto um sorriso solar, em meio a escuridão chuvosa, ilumina todo o seu semblante.  Um fundo musical começa a vir de longe, começando a contagiar os passos daquele jovem, que inicia uma dança inesperada, sapateando entre poças e pendurando-se num velho poste de luz, a girar com a leveza de uma pluma.
Pedro, observando a cena, olha para o avô, sabendo que aquela coreografia não lhe era estranha.
- Vô, isto também tem a cara de um filme que assistimos juntos.  A música, a alegria do cara apaixonado...  Só pode ser "Cantando na Chuva" certo?
- Sabia que não ia esquecer de um filme tão bonito.  E uma cena rara, fora dos padrões daquela época, onde a dança acontecia em lugares geralmente glamourosos. No meio do temporal, com o velho guarda-chuva (que todos adoram deixar para trás, ao se verem salvos do aguaceiro), alguém teve a ideia genial de criar uma atmosfera de pura poesia.  Veja só!  O coração dele está tão iluminado, que pouco importa se faz chuva ou sol.  O apaixonado só quer cantar e dançar sua felicidade; seu amor pela vida.  
- Esse cara, não é aquele tal de...
- Isso mesmo, Pedro.  Gene Kelly!  Aliás, é impressão minha ou ele está chamando você para dançar com ele também?
- Quem, eu...
Antes que Pedro voltasse seu olhar mais uma vez para o alegre dançarino, sente algo tocar o seu ombro e virando impulsivamente se depara com a figura de Gene Kelly, lhe oferecendo aquele velho guarda-chuva, que o menino segura surpreso como se carregasse um troféu.
- Agora é a sua vez.  Quero ver você levitar sobre o asfalto.
Pedro olhando para o avô, vê em seu rosto sorridente, todo o incentivo de que precisava e sem temer o fracasso, sente a música embalar o seu coração e seus passos, acreditando que mais um sonho pode ser realizado.  O que segue é um agitado bailado, a tirar partido de poças d'água, que se lançam no ar, desafiando a lei da gravidade, e esboçando beleza na paisagem taciturna de uma noite chuvosa.  Ao término da canção, quando um policial se aproxima todo encapotado fazendo sua ronda noturna (exatamente como acontecia na sequência musical do filme), o menino intuitivamente revive a mesma postura de Gene Kelly, cumprimentando a autoridade e disfarçando toda sua euforia enquanto se afasta de mansinho assoviando as últimas notas musicais.
Reaproximando-se do artista e do avô, orgulhosos de seu desempenho, Pedro num gesto de reverência devolve o mágico guarda-chuva às mãos de seu dono.  Ao que Gene Kelly, agradecido pela descoberta de um incrível talento, recusa aceitá-lo de volta, para surpresa de Pedro.
- Este é um presente meu para você.  Guarde-o junto à bengala de seu amado Vô Arthur. Será a prova de que tudo que viveu neste sonho, também pode coexistir na sua realidade.
- Mas como é possível?  Não é tudo fruto da minha imaginação?
Abaixando até a altura do menino, o artista fixa o olhar em sua incrédula fisionomia.
- Onde começa a ilusão?  Até que ponto podemos achar que o que vivemos quando despertamos, é mais real do que a verdade que sonhamos.  Somos eternos no mundo que criamos, Pedro.  E nãp precisa se deparar com a morte para se descobrir isso.  Somos o que nos permitimos ser.  Sendo assim, dois objetos de universos diferentes irão conviver no mesmo tempo, no mesmo espaço, assim que os primeiros raios de sol baterem na janela do seu quarto.  Fim da lição de hoje, não é amigo Arthur?
- Falou tudo!  Hoje nos encontramos mais tarde em Xanadu...




II


Naturalmente, um novo ciclo de imagens recorrentes do passado, continuam se mesclando a criatividade ilusória tanto do menino, quanto das personagens etéreas, que o visitam em seus sonhos, dando margem a um fascinante universo paralelo, onde a vida é sempre imperativa, independente das histórias que se despedem na vigilância do mundo terreno. Pedro, ao despertar no dia seguinte, obtém a comprovação das proféticas palavras do mestre Gene Kelly; que se alinhavam a tudo que o avô vinha lhe dizendo, desde a noite anterior. Aos primeiros raios de sol, lá jaziam encostados um no outro, em discreta aliança dimensional: a bengala e o guarda-chuva; símbolos de mundos aparentemente distantes, mas poeticamente compatíveis.
O jovem Pedro, nos dias que se seguiram, era o resultado promissor da riqueza de experiências vivenciadas em suas noites de sonho. Embora mantivesse segredo em relação à mãe, de tudo que experienciava solitariamente, o comportamento e o humor de Pedro,passavam por uma mudança animadora, tanto aos olhos de Dona Regina, como de todos que com ele conviviam. A mãe nunca foi tão grata às suas orações, ao presenciar a felicidade voltar a brilhar nos olhos do filho, mesmo sem qualquer explicação racional. Ultimamente, ela vinha trocando sua lógica inquisidora, pelas artimanhas milagrosas do Desconhecido. O importante é que Pedro finalmente encontrava seu caminho. Ele não transparecia mais aquela revolta iminente, aquela sequela de abandono, no fundo do olhar. Passou a se reaproximar dos colegas do colégio, a ser companheiro sem deixar de ser competitivo, nas práticas esportivas; a se interessar por conteúdos diversos, em todo tipo de leitura ou hábito de lazer, como se tornar um cinéfilo de carteirinha, procurando conhecer cada vez mais de perto, os bastidores da vida de atores e filmes consagrados; além é claro de começar a melhorar suas notas e começar a pensar em que profissão se sentiria mais realizado. Pergunta para a qual, ainda não tinha uma resposta pronta. Enfim, Dona Regina sabia que o filho guardava em segredo, a chave de toda esta mudança. Na hora certa, tinha certeza de que dividiria aquela doce verdade com ela.
Noite chegando. Pedro se preparava para embarcar em mais uma contagiante aventura pelo redentor reino dos Sonhos. E Vô Arthur foi logo sendo o anfitrião, das boas notícias que lhe aguardavam.
- Meu garoto, hoje tenho uma surpresa especial para você: vamos conhecer o genial vagabundo, Carlitos! Ele vai precisar da sua ajuda ao enfrentar muito perigo, sendo perseguido por aqueles guardinhas chatos, que insistem em pegar no seu pé. Ainda mais agora que está cuidando de um pobre garoto órfão, abandonado pela mãe; e que viu na companhia dele, um sopro de esperança.
- Não me lembro de ter visto nada desse Carlitos, mesmo sabendo da sua influência na história do Cinema. Podia ter trazido o Chaves; sou fã dele!
- Com todo respeito à turma do Chaves, mas tanto ele como outros famosos comediantes pelo  mundo, tiveram Carlitos como referência. O inimitável personagem de Charles Chaplin, foi baseado na extrema pobreza enfrentada por ele na infância. Seus filmes faziam parte do antigo cinema mudo; mas Carlitos nunca precisou do som das palavras, para divertir e comover várias gerações.
No exato momento em que Vô Arthur o anunciava, contando um pouco de sua história, o atrapalhado e simpático vagabundo, surge diante dos olhos de Pedro.  Simultaneamente, todo o cenário em volta deles, de vasto colorido, era convertido a uma nostálgica fotografia em preto e branco.  A partitura de piano que se ouvia ao longe, acompanhava o ritmo acelerado das confusões armadas pelo elétrico homenzinho de chapéu coco, bigodinho engraçado, sapatos avantajados e uma bengala frenética, capaz de salvá-lo das mais incríveis enrascadas.
- Nossa, quanta rapidez!  Na vida real ninguém corre desse jeito.  - observa Pedro.
- Estes filmes do início do século, tinham uma filmagem acelerada, justamente para despertar parte do humor.  Apesar de mudo, os filmes apresentavam uma ou outra legenda, para explicar o básico da trama.  O restante, a gente entendia perfeitamente através da linguagem da pantomima.
- Panto...  O que é isso?
- Está vendo toda essa bagunça em cena, cheia de acrobacias, gestos exagerados e muita palhaçada?  Você acaba entendendo tudo e se divertindo, sem que os atores precisem dizer uma só palavra.
- Sim, é verdade!  Parece aqueles desenhos do Tom & Jerry ou do Bip Bip.
- Você pegou o espírito da coisa, Pedro.
- Bem legal!  Olha vô, acho que o Carlitos tá precisando de ajuda, pra evitar que aquele menino desamparado, seja levado pelos guardas.
- Isso mesmo, vá até lá!  Carlitos e aquele pobre órfão, precisam do nosso apoio.  O trabalho dos guardas é o de levar a criança para um orfanato, impedindo que nosso amigo continue cuidando dele, como o pai que essa criança nunca teve.  Não se esqueça Pedro: mire no traseiro dos guardas, para distrair a atenção deles, afinal, como dizia o Chaplin: "A bunda é a sede da nossa dignidade".  Exponha eles ao ridículo e perderão o controle da situação.
- Ok.  Lá vou eu!
- Pedrinho!  Acho que vai precisar da minha bengala.  Tire proveito dela, nas suas travessuras.  Como Carlitos sempre fez.
- Valeu vô!  Vai ser como estar num game de verdade.
Carlitos tentava libertar o menino das mãos do guardas, sem muito sucesso, até que o herói vagabundo, olhou para o lado e descobriu que mais alguém estava do lado dele.  Pedro utilizando de toda destreza e irreverência, típica de um Carlitos mirim, não dava trégua à paciência daqueles truculentos homens da lei; chutando seus traseiros, esquivando-se por entre as pernas deles, ou mesmo dando bengaladas na cabeça, a fim de tornar possível a fuga do menino; que na primeira oportunidade correu em direção ao atrapalhado pai adotivo de bom coração.  Carlitos deixa seu protegido, escondido atrás de várias latas de lixo de um beco, partindo para salvar o valente Pedro, que estava quase sendo dominado.  Usando da curvatura do cabo da bengala, como uma espécie de gancho, Carlitos puxa o pé de um dos policiais, fazendo com que caia de quatro sobre o companheiro de farda; permitindo que a dupla saia correndo em busca da liberdade.  A dupla corre até o final da esquina, ao mesmo tempo em que outros guardas veem em sua direção, tentando encurralar nossos heróis.   Neste instante, quem passava de carro, contornando a rua e parando em frente a eles?  Vô Arthur, é claro!  Dirigindo uma limousine antiga roubada, acena para os dois, abrindo a porta e pedindo que se jogassem para dentro do veículo.
Uma vez seguros dentro do automóvel, Pedro não se continha de tanta euforia, por tudo ter acabado bem.
- Vovô, onde descolou esse carro de luxo?
- É melhor nem sabre, meu neto.  Coisas que só a magia do cinema pode explicar.  
- Ih, caramba!  Não respeitamos a primeira regra de um filme mudo.  Desculpa, seu Carlitos!
Tirando o bigodinho postiço e o intocável chapéu, que nem saiu amassado, depois de tanta confusão; o ilustre vagabundo ostentou a icônica bengala à sua frente, como um autêntico lorde e disparou seu comentário.
- A cena acabou meu jovem.  Agora, podemos falar livremente.  As gravações desse meu novo filme "O Garoto", só vão recomeçar amanhã à tarde.  Sou Charles Chaplin; protagonista, autor e diretor deste filme, cuja trilha sonora, também é minha, modéstia à parte.  E este pequeno jovem talento aqui é   Jackie Coogan.                     .  Terá um grande futuro pela frente.  O cinema é uma arte que promete muitas surpresas para o novo século que começa.  Seu avô já havia me falado sobre você, Pedro.  Sou um sujeito muito desconfiado e achei que estivesse exagerando.  Coisa de avô coruja!  Mas hoje pude ver que ele não mentiu nem um pouquinho a seu respeito.  Você tem presença, carisma e é muito determinado no que faz; assim como eu.  Já pensou em seguir a carreira de ator? 

A indagação, vinda do maior cineasta de todos os tempos, deixou Pedro quase sem palavras. Era a primeira vez que alguém o fazia refletir sobre sua vocação profissional, elogiando características de seu temperamento, capazes de influenciar na escolha de um caminho para seu futuro. De certa forma, a vontade de viver várias vidas e dar voz a todo tipo de emoção, que pudesse visitar dentro de si, sem medo ou arrependimento, sempre fez parte de suas dúvidas e inquietações. Chaplin parecia aqueles oráculos da antiga Grécia, que estudara no colégio, cuja natureza visionária apontava para o desavisado predestinado, coisas sobre as quais jamais se importou em refletir. Ao longo das próximas noites, Chaplin me apresentou a outros mestres e amigos da trajetória cinematográfica, incentivando a que também me apadrinhassem, cada um a seu modo. Sendo assim, aprendi a cavalgar com John Wayne; andei de bicicleta com Paul Newman naquela famosa sequência de "Butch Cassidy and Sundance Kid", ao som de B.J. Thomas: ensaiei uma canção com Elvis Presley; isto sem falar na psicodélica viagem a bordo do submarino amarelo dos Beatles.  O mais impressionante, é que em todas estas ousadas aventuras, Vô Arthur sempre dava um jeito de participar, como se ficasse com ciúmes de me dividir com tantas personalidades internacionais. Ele era como um fiel timoneiro, atuando como coadjuvante de ouro, na odisseia de Pedro,  pela ilimitada terra dos Sonhos.
 O Tempo passou. A memória sofrida da primeira grande perda de de sua  vida, não mais perdurava de forma amargurada, no inconsciente de Pedro. O que permaneceu na boa saudade do avô, foram os ensinamentos, sempre recheados de boas risadas e de um fiel compromisso com a alegria de viver, acima de qualquer circunstância. Nas aventuras instigantes, que aguçavam a curiosidade pelo desconhecido, Pedro também aprendeu a conviver e tirar partido dos próprios erros, reconhecendo temporários limites e se aperfeiçoando para superá-los. Foi assim que aquele menino, abandonado em sua justa revolta, acabou encontrando no mundo dos Olhos Acordados; toda rota do tesouro, anunciada no controvertido e paradoxal mundo dos Sonhos. Assim, Pedro acabou encontrando na verdade dos palcos, o alimento espiritual indispensável para nutrir sua persona de Ator; fosse no berço do Teatro ou nas produções cinematográficas, das quais tinha prazer em participar; e para algumas até elaborar o roteiro, como aprendeu certa vez com mestre Chaplin. 
Já faziam alguns anos, que Vô Arthur não mais o visitava em seus sonhos. Ele sabia que mais cedo ou mais tarde, sua disponibilidade para subverter a ordem de qualquer mundo que habitasse, seria restrita por forças superiores, a sua indomável e cativante rebeldia. Numa de suas últimas conversas com Pedro, chegou a intuir que aquele poderia ser o último encontro entre eles.
- Orgulhoso de você, meu neto. Por vezes eu pensei que esta minha louca aventura para resgatar e curar você, de um sofrimento que lhe consumia, não teria sucesso. Mas a teimosia, sempre foi meu melhor defeito; e olha o que posso testemunhar agora; diante de um jovem que aprendeu a acreditar em todas as possibilidades da força do desejo humano, em um mundo de tantas covardias e tão pouca esperança. Sentirei falta da sua companhia; mas irei surpreendê-lo com  minhas artimanhas, quando mensos esperar. Acredite e sabiamente, aprenda a arte de esperar.
Com Vô Arthur, Pedro também aprendeu que a desobediência civil, pode ser uma boa estratégia até no mundo espiritual.  Afinal, se os dois planos de existência tem semelhanças entre si; não foi através da rebeldia bem intencionada que as grandes mudanças humanitárias aconteceram?  Arthur soube escolher os atalhos necessários para devolver o neto à rota da estrada principal de seu destino: a esperança.


Era Semana Santa e os últimos ensaios da peça de formatura que Pedro escrevera para seu grupo de Teatro, aconteceram na quinta-feira.  Domingo foi a tão esperada apresentação na tradicional sala de espetáculos de um badalado shopping da cidade.  Pais, professores, amigos, unidos a um grande público atraído pela divulgação nas redes sociais, lotavam as acomodações daquele aconchegante teatro.  Dona Regina, sentada na primeira fila não parava de chorar emocionada, antes mesmo da peça começar.  Pedro surge sozinho do meio das volumosas cortinas vermelhas, para recepcionar a animada platéia que prestigiava a primeira apresentação profissional daqueles jovens atores.
- Obrigado pela presença de todos.  É uma honra contar com a casa cheia, como gosta de dizer o nosso diretor.  Este é um momento muito especial para a vida de cada um que fez parte desse projeto de arte e de vida.  Espero que gostem dessa homenagem a crianças de todas as idades, que um dia viveram a dor de uma perda e mesmo assim, não se permitiram crescer como adultos entristecidos e sombrios, por trás de falsos sorrisos de esperança.  Mas continuaram a acreditar de coração puro, na memória dos bons momentos vividos com a pessoa amada.  E de como seria importante continuarmos aqui lutando pela nossa felicidade, para também torná-la feliz em qualquer canto do universo, onde um dia iremos nos reencontrar.  Deixo agora vocês com "O Amigo dos Sonhos".












  

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