domingo, 28 de setembro de 2014

CONTOS DA MADRUGADA - LUA DE SANGUE





EPÍLOGO

Numa casa de estilo colonial, entre tantas construções tradicionais, distribuídas pelos íngremes acessos de Santa Teresa, o interfone é acionado altas horas da noite e ao ser atendido, uma voz familiar identifica-se, carregando na entonação irregular de sua voz, a marca de uma estressante expectativa, como se tivesse sobrevivido a travessia de uma tortuosa fronteira entre a clausura do passado e a redentora esperança, de um presente imprevisível.
A porta se abriu e antes de qualquer palavra, o calor humano de um forte abraço, falou mais alto, unindo corpos que dialogavam no silêncio de olhares e afagos, de genuína cumplicidade.
- Parece um milagre, poder estar aqui com você !  - garantiu Ângela, quase num sussurro aliviado, ao término daquele abraço.
- Assim que me ligou no final da tarde, já percebi que algo muito grave havia acontecido.  De uma certa forma fiquei feliz, por ter sido tão corajosa em cumprir o que prometemos um para o outro; mas estranhei a rapidez dos acontecimentos, além de sua tensão ao telefone.  Mas o importante, é que agora estamos juntos !  E seja o que for que venha pela frente, teremos mais força para superar, não é mesmo ?  - considerou Victor, numa voz calma, assertiva, procurando capturar no olhar evasivo de sua amada, um intuitivo esclarecimento por mais superficial que fosse, sem que precisasse incomodá-la com o que poderia ter precipitado a fuga de sua casa.
- Tem razão.  O importante é que vencemos; a tudo e a todos que não esperavam que chegaríamos tão longe.  Mas não quero falar agora, do que me trouxe desesperadamente até aqui.  Estamos seguros, é o que importa.  Ajude a pegar as minhas coisas lá no carro.  No turbilhão, virando a minha vida de cabeça para baixo, ainda consegui lembrar assim que cheguei ao Rio, de trazer um toque de sofisticação ao nosso reencontro; escolhendo um delicioso vinho, para abençoar a nossa longa madrugada.
- Tudo bem.  No momento certo, sei que saberá dividir comigo, o que realmente aconteceu.  Nos planos de vida que vamos construir juntos, não deixaremos brechas para surpresas desagradáveis do passado.  - concluiu Victor, apressando-se a beijá-la, com irresistível voracidade, inteiramente correspondida pela sensual ternura de Ângela.
Mais tarde, no quarto, taças de vinho jaziam pelo chão, entre peças de roupa abandonadas em desalinho, como se testemunhassem silenciosamente, o harmonioso encontro de corpos entrelaçados, entregues a sua nudez libertadora, mapeada pelo toque sutil de carícias inimagináveis; senha secreta na linguagem dos amantes.  Ambos agora, procuravam inteiramente rendidos a paz extasiante daquele abraço acolhedor, que intuitivamente prometia guardar, na intimidade da respiração e do aroma quente da pele, a memória sensorial da paixão compartilhada.
Ângela ergueu lentamente a cabeça do peito de Victor, observando-o em sua breve sonolência, antes de prosseguir em seu movimento, ausentando-se cautelosamente da cama.  Foi até a janela que estava aberta, buscando sobre a cômoda o isqueiro e o maço de cigarros; para depois sentar-se numa cadeira próxima, ficando a contemplar a solitária visão da rua, por vezes maculada pela rara presença de um ou outro veículo, que por ali transitava.  Acendeu o cigarro e tragando-o profundamente, a experimentar um agradável torpor, percorrer-lhe todo corpo, expirou a fumaça em direção a janela.
Pressentindo após alguns minutos, a falta de proximidade de Ângela, ele abriu os olhos, fitando momentaneamente aquela bela imagem da nudez feminina, delineada em sua intimidade, pela pálida luminosidade do luar.
- Fixação emocional na fase oral...  Precisamos remover este vício.  Nada que uma boa sessão de hipnose não resolva !  - comentou ironicamente Victor; rompendo a quietude do quarto ao despertar o sorriso imprevisto, no rosto de Ângela.
- Como amante do meu terapeuta, terei custo zero no meu tratamento.  Prazer e vantagem em todas as situações deviam caminhar juntos, não acha ?  - complementou no mesmo tom de humor, tragando novamente o cigarro.    - Herdei o hábito, da convivência com meu pai.  Por mais que a gente tente fugir, o passado sempre nos acompanha de alguma forma.
- Pronta para me contar o que aconteceu ?  - sugeriu apropriadamente, motivando-a a desabafar.
- Acredita em destino ?
- Como assim ?
- Que a vida é constituída de ciclos, de reedições intermináveis, que mais cedo ou mais tarde, fazem você reviver, coisas que outros já passaram; especialmente dores, angústias, memórias, que pareciam perdidas no tempo ?
- Está filosófica demais.  Será que abusou do vinho, tanto quanto eu ?  - brincou Victor.
- Engano seu.  Nunca estive mais lúcida.  Eu descobri uma coisa sobre o passado do meu pai, que ele jamais imaginou que chegasse ao meu conhecimento.
- A que está se referindo ?
- Sabe naquele dia, quando durante o almoço, explanou sobre a natureza dos psicopatas ?  Deveria ter incluído na relação, entre tantos perfis de suposta superioridade; uma fraqueza em comum.  Todos acabam se revelando, por um compulsivo capricho de vaidade.  Como o de registrar determinadas atrocidades que praticam,só pela tentação de reverem o próprio sucesso.
Victor não disse mais nada, encarando-a com ambivalente curiosidade; como se receasse pelo que iria lhe dizer, ao mesmo tempo em que precisasse estar consciente daquela revelação.
- Depois de fazer a minha mala, preparando-me psicologicamente para uma conversa definitiva com meu pai durante o jantar, lembrei-me de levar algum objeto de uso da minha mãe, como uma espécie de souvenir, não só para tornar mais viva minhas recordações de infância, como também para dar sorte, neste novo projeto de vida.  Foi quando estive no quarto dela, que encontrei escondido por debaixo de algumas de peças de roupa, um estranho objeto, que não pertencia às coisas dela e de certa forma, incriminava meu pai, por ocorrências terríveis cometidas num passado bem recente.  Estou me referindo a participação dele, nos crimes da "lua de sangue".
- E o que a levou a pensar que ele poderia estar envolvido numa história tão mórbida; já encerrada pela justiça ?  - indagou Victor, levantando-se com certa exasperação, quando sentiu uma episódica sensação de vertigem.
- Você está bem, meu amor ?
- Claro; acho que me movi muito rápido e saí um pouco do prumo.  Devo ter bebido além da conta.  - justificou-se, embora aparenta-se não dar muito crédito às próprias palavras.  - Mas continue...  - incentivou ele, dirigindo-se até armário de roupas.
- Encontrei uma câmera digital, dessas que estudantes de cinema ou cinegrafistas amadores, costumam utilizar para documentar fatos do cotidiano.  E lá estava um verdadeiro arquivo de breves gravações domésticas; que ajudavam a elucidar alguns pontos cegos na história verdadeira daqueles assassinatos; que nem a polícia ou a promotoria foram capazes de evocar.  Meu pai entrou no quarto, sem que eu esperasse, assim que terminava de assistir completamente perplexa ao último vídeo; o mais aterrador de todos, onde presenciei o frio ritual de execução de uma mulher indefesa, que implorava por misericórdia.
Victor escutava, enquanto abria o armário e agachando-se, procurou por alguma coisa guardada, na última prateleira do móvel.  Ângela continuou o relato, cônscia de que apesar de Victor permanecer inapropriadamente na sua ocupação, continuava a deter sua atenção, no rumo das palavras.
- Quer dizer que no seu entendimento, Adriano Leminscky seria o suposto segundo homem naquela casa; responsável intelectual pela indução de todo aquele cerimonial de assassinato /
- Foi o que deduzi, pela observação dos vídeos.
- E deixaria você ir embora, levando consigo o seu segredo ?  - indagou o psicólogo, depois de puxar sua mala para fora, descortinando um dos zíperes, que dava acesso a um compartimento secreto para  guardados.
- Eu ainda portava a arma, que ele tinha emprestado ao caseiro.  Quando tentou se aproximar de mim, apontei para ele, engatilhando-a, pronta para usá-la se necessário.  Ordenei que me desse as costas e sem saber ao certo o que fazer, golpeei sua nuca, trancando-o no quarto.  E então parti para meu plano de fuga.  Dona Leonora estava convalescendo e Donato ainda não havia retornado.  Pela primeira vez, tudo conspirava a meu favor !
- Só uma coisa não se encaixa na sua história.  - ressaltou Victor, logo depois de verificar seus guardados, erguendo-se do chão com certo vagar.   - Por que levou o revólver, de forma premeditada até o quarto, se ainda não desconfiava da culpabilidade de seu pai ?  E mais um detalhe que me intriga...  - considerou ele, voltando-se para Ângela, segurando firmemente em sua mão direita, um reluzente e pontiagudo objeto metálico.  - Por que andou mexendo nas minhas coisas, pegando algo que não lhe pertencia ?  Vamos acabar com esse teatro.  A quanto tempo sabia que a filmadora era minha ?
Ângela não aparentava estar nem um pouco surpresa com a reação discretamente hostil de Victor; permanecendo sentada; o mesmo olhar sereno, sem mover um músculo.
- Desde a noite do acidente; quando a encontrei no fundo falso de sua bagagem, Victor; ou será Marcos ?...  São tantas identidades e tão pouco caráter, não é mesmo ?  Eu descobri naquele momento, que você seria o meu passaporte para a liberdade.  Afinal, qual o percentual de probabilidade para se achar uma alma gêmea, naquele lugar isolado, esquecido, distante de qualquer possibilidade de reverter o próprio destino em todos os sentidos ?
Victor tentou adiantar os passos até ela, mas sentiu dessa vez as pernas fraquejarem e a visão, tornar-se inesperadamente turva, resultando imediato desequilíbrio corporal, fazendo-o cair de joelhos violentamente contra o chão, impactando justamente o pulso onde até então, segurava aquela intimidadora faca de caça.
- O que colocou na minha bebida, sua cadela ?  Você me dopou !...
- Calma, olhe o linguajar.  Sua maior qualidade, sempre foi o cavalheirismo.  - comentou sarcasticamente Ângela, apagando o cigarro com veemência contra o parapeito da janela.  - Eu precisava da câmera para surpreender meu pai, ainda que as acusações fossem infundadas, criando o clima necessário para abandonar aquela casa.  Ele entenderia minha histérica reação e culparia você por tudo, concentrando seus esforços para localizá-lo pensando que estaríamos juntos.  Assim que descobri naquele extenso compartimento, além da filmadora, daqueles estranhos frascos farmacêuticos, aquela enorme quantia em dinheiro; provavelmente fruto de seu último golpe, extorquindo ou ludibriando através de manobras sentimentais, aquela velha carente, que sustentava todos os seus caprichos; me veio a ideia de trocar a câmera original, por outro objeto, dentro da sua pochete de couro.  Na verdade, como pôde observar agora, pela antiga máquina fotográfica de minha mãe.  Tendo livre acesso tanto ao quarto, como a sua confiança, efetuar a troca no momento masi adequado, não foi difícil.  Apostei comigo mesma, que na medida em que ainda se sentisse seguro com seu segredo, nunca desconfiaria da pobre donzela, aguardando ser salva pelo heróico forasteiro.  Não é que a mitologia dos contos de fada, ainda funciona no imaginário masculino ?  Talvez por se sentir dono da situação, não tenha lhe ocorrido vasculhar detalhadamente sua mala. Como vê, a sorte sempre premia a ousadia.
Victor ainda fez um último esforço para levantar e não conseguindo, tentou arrastar-se portando a faca na outra mão, tentando superar o torpor anestesiante que ameaçava paralisar em pouco tempo, a maior parte de seus movimentos.  Ângela finalmente ergueu-se da cadeira, contornando o corpo do amante, como se o desafiasse com sua altiva tranquilidade.
- Sua obstinação para vencer a qualquer custo, é de fato admirável.  Só que nós dois sabemos que a dose química que destilei na bebida, deve ter sido coincidentemente proporcional, a que administrou naquelas pobres mulheres, que assistiram conscientemente imobilizadas, a crueldade de sua sentença.  - anunciou Ângela, acomodando-se confortavelmente na cama, enquanto observava o esforço inútil do parceiro por reagir a progressiva imobilização de seus movimentos.
- Parabéns, minha menina.  Mas se pensa que vai ser tão fácil se livrar de mim, está enganada !
- Mas não lhe quero mal, meu amor.  Apenas preciso dar um jeito na minha vida.  E graças a você, terei os rendimentos necessários para isso.  Na verdade, agradeço por ter sido minha inspiração.  Se não tivesse atravessado o meu caminho, esta outra mulher, forte e determinada, que sempre existiu dentro de mim, jamais teria aflorado.  Quando assisti ao registro das gravações, foi que comecei a juntar as peças no tabuleiro do seu jogo mental.  O comparsa de seus crimes, não era um marginal comum; mas sim, uma personalidade fragilizada.  Um rapaz que enfrentava problemas com a ocultação de sua homossexualidade.  Ele foi procurá-lo secretamente, pedindo ajuda para poder enfrentar o conservadorismo homofóbico do pai, que insistia em casá-lo com uma jovem da alta sociedade, possibilitando através desta união o somatório do patrimônio de ambas as famílias.  Mas a opção sexual de seu cliente, bem como o caso que mantinha às escondidas, com um amante de longa data; o colocaram numa dramática encruzilhada.  Foi então, que você propôs durante as sessões, fazendo uso da hipnose, que o ajudasse num plano mirabolante, que salvaria os dois, de incômodos problemas.  Você o ajudaria a se livrar da noiva, permitindo que continuasse a viver o caso amoroso; em troca dele colaborar no sumiço de uma moça; que passou a ameaçar o futuro promissor que construíra com aquela rica senhora, que o tirou do limbo, transformando todos os seus sonhos em realidade; descartando de sua vida, aquela ex-garota de programa, com quem mantinha um caso duradouro; evitando que ela jamais contasse a verdade a sua protetora.  Para que a montagem daquela farsa mística, fosse de fato eficiente, faltava se desfazer da última peça do seu jogo: seu próprio cliente.  Dando prosseguimento ao processo de sugestão emocional, pelo uso imperativo da hipnose, induzi-lo a uma culpa insustentável e ao consequente suicídio, na mesma cena do crime, não foi uma tarefa fácil, mas ao final bem sucedida.  Ameaças descartadas; aproveitar-se durante o tempo que passou, dos benefícios financeiros proporcionados por aquela inofensiva senhora, foi a parte mais interessante da história.  Principalmente enquanto a envenenava lenta e imperceptivelmente, levando-a a óbito, sem despertar maiores suspeitas.  Dinheiro no bolso, passaporte providenciado para tentar a sorte no exterior; só não contava ser pego de surpresa, por aquele infeliz acidente, quando certamente voltava da casa de sua falecida companheira.  Pulei algum detalhe significativo, meu amor ?
Conseguindo virar o corpo para trás, esgueirando-se até a parede, Victor fez um derradeiro esforço para encostar-se na superfície, , sendo obrigado a abandonar a faca, para executar aquela difícil manobra física.  Ângela contemplava seu esforço com uma ponta de orgulho, apreciando o empenho da presa até então acostumada a estar no controle, a buscar não só sobreviver, mas reverter de alguma forma, a situação que o vitimava.
- Sabe de uma coisa ?  É decepcionante ver o quanto me usou durante tão pouco tempo, para decidir me trair, justamente no momento mais decisivo de sua própria vida.  Não pode negar a sintonia que existe entre nós.  Somos feitos da mesma "argila" genética.  Poderíamos reinar juntos em qualquer lugar, desde que fôssemos sócios de verdade, na cama e nos negócios.  Mas a inveja e a paranóia feminina, falaram mais alto, jogando-a contra a única pessoa no mundo, capaz de entendê-la.
- Ponto para você; gostei da sua lábia.  Bem mais gentil, na medida em que percebe estar indefeso frente às escolhas que tenho a minha disposição.
- Escolhas ?  Nesse território desconhecido, não passa de uma amadora.  Precisou e ainda precisa de mim, para planejar o seu futuro.
- Nada disso, meu querido.  Chega de homens, ditando o que devo fazer de minha vida.  Tenho de admitir o quanto seria tentador continuar a viver esse caso apaixonante.  O sexo com você é maravilhoso; mas também infinitamente traiçoeiro.  Não conseguiria permanecer a meu lado, sem continuar a dar as cartas, guardando o velho ás na manga, sempre com o blefe perfeito, na ponta da língua.  Ficar presa a memória de bons momentos na cama, foi o que sempre derrotou mulheres de gerações anteriores.  Estou evoluindo; não só nos métodos, como na própria essência feminina.  Já reparou ultimamente, como não existem estatísticas a respeito de mulheres psicopatas ?  E já devemos se em maior número...  A razão para isso, é nossa sutileza; optando por reinar nos bastidores, do óbvio poder masculino.  Poder movido a vaidade, que só os expõe cada vez mais, levando-os a inevitável captura e derrota.  Agora, deixa eu colocá-lo confortavelmente na cama; que tenho muitas providências a tomar, antes da minha partida.  - argumenta Ângela, levantando-se prontamente, ansiosa por dar continuidade as suas ideias.  Abaixando-se sem o menor receio, ela procura erguer Victor pelos braços, como uma legítima enfermeira, prestando auxílio ao cliente fisicamente debilitado.  Demonstrando uma segura sustentação muscular, arrasta-o delicadamente até o colchão, ajeitando-lhe o corpo, enquanto acomoda o travesseiro sob sua nuca.
Victor observa-lhe o toque gentil, a postura cuidadosa, expressando no seu rosto um sorriso debochado, que chama a atenção de Ângela.
- O que lhe parece tão divertido ?
- Nada.  Estava só refletindo sobre você.
- Já que não temos mais segredos...  Por que não me diverte um pouco também ?  - ironiza Ângela.
- Estava pensando numa garota mimada, superprotegida por uma família conservadora, onde apesar de sempre se perceber como uma espécie de "estranho no ninho", nunca machucou ninguém.
- Como você pode saber ?
- Somos almas gêmeas, lembra-se ?  Um predador conhece os instinto do outro.  E você nunca experimentou extrair prazer, do ato de torturar ou matar alguém.  Até entre pessoas como nós, existem níveis de ascensão.  E você ainda não está no topo da cadeia alimentar.  - analisa Victor, sem omitir o sarcasmo.
- É mesmo ?  Quer dizer que sou tão previsível...
- Pelo contrário, é uma mulher surpreendente.  Com um senso de objetividade, bem maduro para sua idade.  Mas também não pode virar as costas às tentações juvenis, que cercam garotas educadas no epicentro da moralidade cristã; quando de repente, se libertam das amarras.
- E o que garotas como eu, desejam da vida ?
- A princípio, trepar alucinadamente, como se não houvesse amanhã; depois, conhecer o mundo lá fora, esperando encontrar algo diferente daquilo que já estão saturadas de conhecer, em sua restrita gaiola familiar.  Por isso, se pensa que vai fugir com meu dinheiro, mudar o visual, trocar de identidade, de país
Ângela olha-o com certo desdém, como se suas palavras intimidatórias não a atingissem.  Volta-se para a faca caída ao chão e aproxima-se, pegando-a com um misto de estranhamento e fascinação.
- É uma peça assustadora, porém muito bonita.
- Para quem sabe usá-la, pode ser um troféu !  provoca Victor.
- Mas você não sujou as mãos de sangue, naquele duplo assassinato.  Embora tenha realizado algo muito mais mórbido: fazer alguém matar por você.
- Nem sempre a vida me sorriu generosamente.  Até encontrar meu porto seguro com aquela boa senhora; quando vivia sozinho e sem perspectiva pelo mundo, digamos que fiz o necessário para sobreviver...  O tempo, só fez refinar meus métodos.  Mas com você, foi diferente.  Dedicou-se a cuidar da sua mãe; contentou-se em fugir do machismo de outros homens, escondendo-se nos braços de um pai amado; e quando teve a chance de manusear uma arma, não experimentou o impulso irresistível, de voltá-la contra aquele que lhe aprisionava.  Ferir literalmente outro, definitivamente ainda não faz parte de seus atributos.
Ângela fixa o olhar demoradamente sobre ele, aconchegando o letal objeto metálico entro os dedos, com uma determinação tátil bem resoluta, como se ela e a faca, fossem velhas conhecidas.  Caminhando lenta e sensualmente, ostentando ao voyeurismo desejoso de Victor, sua provocante nudez, ela sobe na cama abrindo as pernas em torno do corpo do amante, descendo calmamente, para ajoelhar-se no colchão, um pouco acima de sua cintura, quando ele já começava a experienciar uma onda de torpor anestesiar-lhe aos poucos, o movimento da mandíbula; o que em breve inibiria sua comunicação com Ângela.  Inclinando-se, ela chega a encostar os seios sobre seu tórax, desenhando com a lâmina, todo o contorno fisionômico de Victor.
- Qual o nome dela ?  Daquela que venerava você e terminou implorando pela vida, enquanto gravava aquele vídeo ?
- Vanessa...  - respondeu ele com certa dificuldade, sentindo a articulação da fala bastante limitada.
- De repente quando olhei para você, a medida em que me aproximava da cama, tive uma sensação estranha...  Era como se o grito dela, silenciado pela sua pervertida omissão, se propagasse agora dentro de mim; e por todo esse quarto...  Sabe, numa coisa você tem razão: executar alguém apenas pelo prazer de minhas ambições, realmente não está entre meus atributos.  Mas e se eu tivesse uma motivação acima do meu individualismo; capaz de redimir-me do próprio ato, pela imposição de uma justiça divina ou simplesmente de uma lei física, nitzscheana, de eterno retorno ?...  Esta seria uma circunstância viável para experimentar algo totalmente novo em minha vida.  - confidenciou Ângela, entregando-se a seus devaneios, enquanto suspendia o corpo, descendo a ponta da faca até o pescoço do amante, pressionando-a levemente contra a traqueia.  Quando uma gota de sangue começou a escorrer, ainda que pelo tênue contato com a pele, ela pareceu despertar do breve transe de suas divagações, afastando o objeto para acolhê-lo entre as mãos, como se uma parte de sua mente resistisse a usá-lo.
Victor esboçou um sorriso de alívio, tentando articular alguma frase, de uma boca que não mais conseguia obedecê-lo.  Porém, seu olhar fitava Ângela com uma enigmática expressão de vitória psicológica, apesar de toda desvantagem física.  Para o psicólogo, ela não ousaria atravessar aquela controvertida fronteira, concedendo-lhe forçosamente, uma segunda chance.
Ângela de fato, após alguns segundos de meditação, num gesto precipitado, arremessou a faca para o chão, deitando-se novamente sobre ele, tocando os lábios carinhosamente nos seus, antes de falar ao seu ouvido.
- Vou guardar na memória, os bons momentos que passamos juntos.  Mas a tentação do imprevisível, faz parte do poder feminino.  Posso confessar uma coisa ?...  Vanessa manda lembranças.  - argumenta Ângela, puxando o travesseiro repentinamente sob sua cabeça, fazendo-a tombar de forma brusca sobre o colchão.  Posicionando o objeto contra o rosto de Victor, passa a pressioná-lo, a princípio com a firmeza de suas mãos; e logo depois, valendo-se do próprio peso do corpo, numa espécie de abraço mortal.
O desespero pela ausência de ar, levou Victor a experimentar instantâneos e convulsivos espasmos, discretos pela ação da droga, antes da letargia absoluta.  Ainda deitada sobre ele, Ângela suspirou serenamente, dizendo para si mesma na solidão do quarto: - Adeus, meu amor.

Noite de sexta feira, no outono novaiorquino.  Às margens do rio Hudson, com vista privilegiada para a nostálgica iluminação romântica da ilha de Manhattan; o olhar solitariamente introspectivo de uma jovem e atraente mulher, guardava para si, aquele momento único de beleza, enquanto saboreava uma taça de vinho branco, a contemplar o banal e poético passeio de casais apaixonados e famílias felizes, por trás da vidraça daquele aconchegante espaço gastronômico, frequentado em sua maioria por brasileiros; saudosos de um caloroso recanto para sua memórias.
- Excuse me; brazilian tourist ?  - arrisca um galante desconhecido, abordando-a na esperança de fazer-lhe companhia.
- Yes !  Mas pode falar na minha língua.  Com esta pronúncia, sua cantada em inglês deve ser péssima.  - disparou Ângela, com seu habitual humor desconcertante.
- Posso me sentar ?  Estava tão linda e pensativa, que não resisti a aproximar-me para conhecê-la melhor.
Ângela sorriu despretensiosamente, expressando no olhar, a permissão que ele tanto desejava.  Mas continuou a fixar seu interesse, para a vida de "cartão postal", que pulsava lá fora.  O rapaz falava de tudo para conquistar-lhe a atenção; porém apenas uma coisa pareceu acordá-la, do vasto assédio de sua imaginação.
- A noite irá ainda mais bela e misteriosa no início da madrugada.  Parece que poderemos assistir a olho nu, pela última vez neste século aquele famoso fenômeno metereológico, conhecido como "Lua de Sangue".  Já ouviu falar ?
Ângela limitou-se a observá-lo com estranha curiosidade; que ele interpretou como uma insinuação sedutora, motivando-o a persistir em sua postura elogiosa.
- Seus olhos capturam a gente, com um encantamento raro hoje em dia.  Transmitem uma inocência incomum e ao mesmo tempo, comovente.
Ângela não resistiu a uma sonora risada; atraindo olhares de mesas próximas e surpreendendo o rapaz que se percebeu no foco de uma constrangedora exposição.
- Lamento. Você é muito gentil...  Mas posso contar-lhe um segredo ?  - indagou, colocando os braços na mesa, inclinando-se para frente, a fitá-lo com ironia; enquanto o rapaz sem saber o que dizer aproximava o rosto defendendo-se com um desconcertado sorriso.
- Não existe lugar para inocência neste mundo.





domingo, 14 de setembro de 2014

CONTOS DA MADRUGADA: LUA DE SANGUE




CAPÍTULO TRÊS


O toque suave combinado ao calor úmido daqueles lábios, pareciam resgatá-lo de um sono intranquilo, deixando na boca, um sedutor convite ao despertar.
- Bom dia, meu príncipe!  No meu conto de fadas feminista, os papéis estão invertidos; do jeitinho que eu gosto.  - comentou Ângela, numa voz delicadamente rouca, quase sussurrada ao ouvido de Victor.
Ao abrir os olhos, ele não esboçou qualquer movimento, limitando-se a observá-la intrigado, por intermináveis segundos.
Ângela não chegou a se dar conta, da contida carga de hostilidade e desconfiança em seu olhar, ao equilibrar a bandeja do café da manhã em seu colo, enquanto sentava-se ao lado dele na cama.
- Estas torradas com geleia de damasco, ficam uma delícia.  Esperei que fôssemos tomar o café juntos na sala de jantar, mas como já estava quase na hora do almoço, sem você aparecer resolvi surpreendê-lo, com uma gentileza típica de recém casados.  Gostou ?
Victor ergueu-se lentamente, alteando os travesseiros e recostando-se, para encará-la no fundo dos olhos, sem dizer palavra.
Ângela baixou o rosto, pressentindo o sorriso de menina esmaecer-se de imediato, frente aquele silêncio inquisidor.  Não demorou para que começasse a se justificar, ainda que supostamente protegida, por um tênue véu de hipocrisia.
- Já sei porque ficou zangado comigo.  E não lhe tiro a razão por isso.  Mas ontem eu não estava bem.  Meu pai teve mais uma daquelas crises depressivas.  Quando o encontrei bebendo sozinho no quarto que ele e minha mãe ocupavam; e que normalmente costuma manter intocável, como uma espécie de santuário, desde que ela morreu; nós conversamos longamente e acabou me pedindo para fazer-lhe companhia, até conseguir pegar no sono.  A essa hora, já imaginava que dona Leonora tivesse levado minha mensagem até você; mas infelizmente não podia abandonar meu pai, num momento tão difícil.
O psicólogo dessa vez não resistiu ao deliberado sorriso sarcástico que delineou entre os lábios, fitando-a de cima a baixo, como se não conseguisse mais aplacar a indignação que ameaçava fluir por suas palavras.
- Vejo agora o quanto o teatro poderá lucrar, tendo você nos palcos.  Mentir é uma arte sofisticada, digna das melhores atrizes.
- Por que está falando comigo, desse jeito ?
- Não deveria se sentir ofendida; é um elogio !  Só que gosto de apreciar uma boa interpretação, apenas como entretenimento.  Nunca cogitei levar para cama, uma personagem, por mais irresistível que ele fosse.  Gosto de fazer sexo com mulheres reais.  Delírios, geralmente são muito perigosos.
- Quer parar de me olhar e falar como se estivesse diante de suas pacientes histéricas ?...  Estou abrindo meu coração e me desculpando com você.  O que mais quer que eu faça ?
- Que pare de se comportar como amante de seu próprio pai !  - disparou Victor, alteando agressivamente o tom de sua voz.
Ângela sentiu um calafrio involuntário percorrer-lhe o corpo, quase desequilibrando a bandeja que apoiou sobre o colo.  Colocando-a para o lado, levantou-se, caminhou até a janela, expondo a bela fisionomia tomada por indisfarçável amargura, diante dos primeiros raios de sol que irrompiam pela vidraça, iluminando parcialmente o quarto, após uma sequencia  de dias chuvosos.
- Já me condenou no tribunal imutável de seus valores.  Qualquer coisa que eu diga, não irá satisfazê-lo; apenas aumentar a raiva e a sensação de estar sendo enganado.  Quem tentou jogá-lo contra mim ?
- Ninguém me contou nada.  Eu vi com meus próprios olhos.  Deveria certificar-se de ter a porta fechada, antes de se entregar a sua promiscuidade.  Pare de mentir !  Não estou aqui para julgar você.  Mas preciso entender o que está acontecendo entre nós.
- É muito simples; eu amo você.  E isto é tão certo para mim, quanto o ar que eu respiro.  E é o que deveria também importar para você, se de fato, me ama.  Qualquer outra coisa que possa ainda estar existindo, pertence a minha história com meu pai; anterior a qualquer chance de um sentimento redentor, voltar a gritar dentro de mim, alardeando uma nova possibilidade de ser feliz.
- Então você admite ?
- Admitir o que ?
- Que se deixou usar pela mente doentia daquele homem.  Quando percebeu que jamais superaria o luto pela esposa, passou a colocá-la de maneira quase alucinógena, no lugar dela.
- Não é verdade.  Está distorcendo os fatos.
- Mas é claro que foi seduzida.  Ele aproveitou da sua carência traumática, após a violência sexual que sofreu, para sugestioná-la emocionalmente, induzindo-a a se isolar do mundo, pertencendo irrestritamente aos seus desejos; tratando as pessoas lá fora, como inimigos em potencial; prontas a desconstruir todo paradisíaco pacto de confiança que reinava entre vocês.  Um pacto inumano, como se fossem divindades, acima de qualquer tabu, acima do bem e do mal.
- Falou o nobre psicólogo, apoiando-se sempre nas ruínas de inúmeras teorias, que se atrevem a explicar, mas não a equacionar, os insolúveis dilemas que a vida nos reserva, sem perguntar se estamos preparados para assumir as consequências.  - inflama-se ironicamente, Ângela.
- Minha querida, você é uma vítima de toda a paranoia onde seu pai viveu mergulhado nos últimos anos.  Você foi sugestionada a viver neste seguro e confortável ambiente de perversidade melancólica onde se encontram.
Ângela reaproximando-se da cama, ajoelha bem diante de seus olhos, fitando-o com sinceridade.
- Pare de tratá-lo como uma aberração moral.  Meu pai foi tão vítima como eu, de toda a tragédia que vivemos e sofremos juntos.  Ninguém fez a minha cabeça.  Quando transamos pela primeira vez, eu sabia exatamente onde eu queria estar e com quem.  Não fui abusada, mas sim despertada; para uma nova possibilidade de encontrar o prazer e a paz que sempre sonhei, ainda que tivesse a certeza de não estar apaixonada.  E de que talvez, jamais voltasse a sentir algo parecido por homem nenhum...  até conhecer você !
Victor até então convicto de seus argumentos, por um instante hesitou de se contrapor, preferindo ouvi-la, diante da autenticidade tão visceral, que emanava daquele depoimento de vida.
- Entenda de uma vez por todas: sempre amei estar com meu pai.  O sexo para mim, tem sido apenas mas um desses momentos.  Em que posso acolhê-lo, confortá-lo e permitir que gozemos juntos da mais extraordinária experiência de amor incondicional, de entrega absoluta, entre um pai e sua filha.  Pode chamar isso de situação edipiana doentia; complexo de Elektra; e o que mais puder se lembrar, para nos demonizar cientificamente.  Mas o que nunca vai poder mudar, é a certeza do que estou dizendo agora.  Sabia o que estava fazendo.  Não foi ele que me procurou, na primeira noite que passamos juntos.  Eu o procurei.  Nós bebemos juntos naquela noite e acabei precipitando aquele encontro; fazendo concretizar o que seus olhos sempre clamavam, mas seus lábios temiam verbalizar, por medo de me perder.  E estava tudo em paz, tanto na minha consciência, como no meu coração; até a vida me surpreender mais uma vez, colocando um estranho no meu caminho.  Um estranho, que em tão pouco tempo, me vez rever uma série de escolhas, confrontando-me com uma decisão, que não dependia de mim, assumir sozinha.
- Que decisão ?
- Continuar aqui, fiel a imagem protetora de meu pai; ou contar a ele, que mesmo continuando a amá-lo, meu tempo nesta casa acabou; e ter a coragem de seguir em frente, partindo ao lado do homem, por quem me sinto verdadeiramente apaixonada.  Você !  -  declara-se Ângela, tendo os olhos marejados pela emoção.  Victor acaricia-lhe o rosto, enquanto ela simetricamente inclina uma das faces, deitando-a no aconchego de seus dedos; fechando as pálpebras, suspirando aliviada, num impulsivo gesto de carência.
- Conhecê-la, é viver um completo enigma, sabia ?  A gente não sabe se foge dele, abandonando-o antes que nos destrua; ou se entrega a ele, na tentativa de decifrá-lo obcecadamente, custe o que custar.  
- É assim que vê as mulheres, que passaram pela sua vida ?
- E o que sabe sobre minha vida ?
- Talvez mais do que imagine.  Penso ver um homem que se preserva muito, receando deixar-se dominar pela emoção.  Aliás o medo, é um sentimento que conhece bem.  Por isso procura controlá-lo, evitando decisões precipitadas em sua vida amorosa.  Enfim , um homem de muitas mulheres, mas sempre arredio em relação ao amor.  Pela marca no seu dedo, percebi que tirou a aliança há pouco tempo.  Ela morreu ?
- O que posso lhe dizer é que tive uma pessoa muito importante em minha vida; mas prefiro não falar sobre o meu passado.  O que posso garantir, é que meu coração está aqui, livre de todo e qualquer receio de se entregar a você.  Isso não é o bastante ?
- Claro que sim, meu querido.  Podemos recomeçar juntos.  - concorda Ângela, erguendo-se para abraçá-lo.
Victor acolhendo-a entre os braços, fala mansamente ao seu ouvido.
- Mas temos que tomar cuidado com seu pai.
- Está enganado; ele só quer o meu bem.
- Exatamente por isso.  Ele não imagina a sua felicidade, longe desse lugar e vai fazer de tudo, para mantê-la perto dele.
- Papai não faria mal a ninguém !
- Sabe que não é verdade, Ângela.  Foi um homem que se excedeu na clandestinidade de vários vícios secretos, que quase o destruíram.  Quem era seu pai, quando não estava perto de você ?  Ninguém sabe; talvez nem mesmo ele !  E deste outro homem, que precisamos nos preservar.
Recuando daquele abraço, a jovem parece traduzir no olhar uma sensata cumplicidade, frente as ponderações de Victor.
- Então precisamos agir rápido.  Não quero fazê-lo sofrer; mas quero estar do seu lado, quando cheger a hora de partir.
- As chuvas deram uma trégua.  Se o tempo continuar assim, provavelmente amanhã, estarei em condições de seguir viagem, embora ainda não me sinta pronto para dirigir.
- Quanto a isso não tem problema.  Podemos viajar no meu carro; partindo bem cedo.  Deixe que eu cuido de tudo.  - garante Ângela, revelando uma expressão contagiante em seus olhos.  - Agora, que tal tomarmos este café da manhã juntos ?  Tanta expectativa, acabou aguçando meu apetite.  Por enquanto, vamos saciar apenas o gastronômico, ok ?  - complementou, com o leviano bom humor de sempre.
A cumplicidade de uma calorosa e sonora risada, invadiu todo o ambiente, legitimando o tom da descontraída conversa que se seguiria.  Ângela e Victor compartilhavam daquela interação tão comum aos casais apaixonados; quando um parece adivinhar as intenções do outro e qualquer revelação sobre temas do passado ou planos para o futuro, ficam impregnados de uma deliciosa sensação de dèja vu, como se aquela história já pertencesse às memórias do casal.  Ângela comentou sobre marcações e observações feitas por ela, em livros que encontrou na sua bagagem que versavam entre outras coisas, sobre a prática da hipnose.  Victor admitiu ter trabalhado com o método, apesar de preferir adotar a livre associação de idéias, sem desviar muito do enfoque psicanalítico, com seus clientes.  Ela confessou sentir medo de ser hipnotizada indagando se o fato do poder estar investido todo na figura do terapeuta, não seria capaz de ameaçar a integridade da pessoa sob tratamento.  O psicólogo explicou-lhe a diferença entre a hipnose imperativa, esta sim, possível de causar danos, por induzir a manipulação dos atos de alguém; e a hipnose consensual, utilizada amplamente por profissionais da área médica.  Depois falaram abertamente sobre acontecimentos significativos de suas vidas familiares; incluindo um ou outro evasivo comentário sobre seus relacionamentos amorosos; quando Victor admitiu nunca ter se casado oficialmente.  A marca da aliança que vira em seu dedo, era apenas um simbólico código de fidelidade, entre pessoas que se queriam bem.  Era uma mulher bem mais velha, que o conheceu numa difícil e errante etapa de sua juventude, ajudando-o a encontrar um rumo certo para seus objetivos; a construir tudo que hoje em dia, ele se orgulhava de ser.  E esta generosa mulher, por um inexplicável desígnio do destino, não mais fazia parte de sua vida, tendo falecido recentemente.
As horas foram passando e antes que se dessem conta, já eram quase duas da tarde; quando a governanta batera a porta com certa veemência, após procurar por Ângela, previamente em seu quarto.  A jovem respondeu de imediato, garantindo que já estaria indo almoçar com o pai.  Pensou em convidar Victor para se juntar a eles, mas logo desistiu da ideia, considerando que a atmosfera emocional, não seria das mais cordiais.  Combinou então, de que Victor deveria alegar alguma indisposição, justificando estrategicamente sua ausência.  Depois, ela pediria a dona Leonora, para trazer-lhe a refeição no quarto.  Ele concordou prontamente e despediram-se, depois de um rápido, porém não menos entusiástico beijo.  Ângela disse que passaria a tarde assessorando o pai, durante a instalação de alguns novos programas no computador; solicitando a Victor, que tão logo anoitecesse, não deixasse de visitá-la em seu quarto; entregando-lhe uma cópia da chave, ao segurar carinhosamente suas mãos.  Victor assentiu, assegurando que aproveitaria o horário da tarde para verificar sua mala, deixando-a pronta, para quando partissem logo pela manhã.
Ao sair apressadamente, diante da batida insistente de dona Leonora, Ângela deparou-se com o olhar nada amistoso da governanta, que olhando por sobre o ombro da jovem, buscou identificar a figura do psicólogo, que lhe sorria displicentemente, acomodando-se na cama; pouco antes de Ângela fechar a porta.
- Espero que saiba o que está fazendo ! - advertiu a velha senhora, tendo o silêncio indiferente de Ângela, como resposta.
Tudo saía como planejado.  Ângela passou o restante da tarde em companhia do pai; dona Leonora pouco tempo depois, adentrou ao quarto, bem mais reservada, atendo-se a servir a refeição de Victor, sem pronunciar qualquer comentário sobre a perigosa relação com sua inconsequente protegida.  Após a saída da governanta, o psicólogo verificou alguns documentos particulares, bem como uma substanciosa quantia em dinheiro, escondida no fundo falso de sua mala, juntamente com outro utensílio de caráter confidencial.  Ansioso demais para focar a atenção na leitura daquele livro, pertencente ao acervo de Leminscky, que certamente não concluiria; resolveu deitar-se e tentar relaxar, programando o despertador do celular para dali a algumas horas.  Mas o descanso um tanto forçado, só lhe rendeu um sono agitado, inspirado por insólitas imagens oníricas.
No sonho angustiante, Victor se via em outro lugar, numa espécie de frigorífico, onde um homem de estatura mediana e físico bem definido, trajava unicamente um grande avental branco sobre a pele, onde realçava-se extensas manchas de sangue; aproximando-se dele com um metálico instrumento, semelhante um cutelo.  Victor se via preso a um leito muito estreito, semelhante a uma maca de hospital; tendo os pés e as mãos atadas por cordas grossas, como aquelas utilizadas em caminhões para transporte de cargas muito pesadas.  O estranho de feições disformes, como uma grotesca figura surreal de Salvador Dalí, ostentava uma cinzenta máscara cirúrgica; e sem dizer palavra, começou a executar um sórdido bailado de golpeamentos precisos e impiedosos, desmembrando em poucos movimentos, partes inteiras de seu corpo.  O sangue esguichava parecendo aglutinar-se numa uníssona forma esférica, que desafiando a gravidade, levitava para o teto escuro do quarto, assumindo o formato lunar de uma bola de sangue.  Antes de sentir o último golpe desferido em direção ao tórax, teve a nítida visão de que a esfera lunar sanguínea assumia as feições do semblante de Ângela.  E então acordou.
Assim que abriu os olhos ele vivenciou a desconfortável sensação de que não estivera sozinho naquele quarto, mesmo enquanto o pesadelo o absorvia pelo convincente apelo de imagens tão surreais.  Percorreu o olhar por toda a dimensão daquele espaço, mas no entanto, não encontrara qualquer evidência real, de que alguém o espreitara, durante o sono. Preferiu atribuir o pressentimento de natureza paranoica, ao nível de ansiedade em razão do rumo incerto, que sua vida estava por assumir.  O relógio do celular acionara-se naquele instante, quando visualizou o horário das dezenove e trinta horas.  Pegou a chave no bolso da camisa, recordando-se das instruções de Ângela.  Esboçou um sorriso vaidoso, ao imaginar-se na atmosfera excitante e proibida de uma primeira e definitiva noite de desejo apaixonado, naquela casa.  Mas resolveu não se deixar levar pela sequencia de devaneios, levantando-se com objetividade; uma vez que Ângela, já devia esperá-lo ansiosamente.
Seguindo pelo corredor vazio e silencioso, parcialmente iluminado, Victor identifica a porta do quarto, posicionando a chave e girando-a cuidadosamente na fechadura, enquanto empurra a maçaneta sem fazer barulho.  O ambiente era dominado por uma singela penumbra advinda da solitária luminária, situada na cabeceira da cama.  Ele caminhou devagar, acomodando-se no colchão, ao mesmo tempo em que estendia a mão para puxar a coberta, que parecia ocultar praticamente, todo o corpo de sua amada.  Ao descer o edredom, surpreendeu-se ao se deparar com o volume de travesseiros previamente distribuídos, passando-se pelo corpo de Ângela.  Nesse instante, antes que sequer levanta-se, sentiu o pescoço ser enlaçado às suas costas, pela pressão de um violento abraço, em atitude de estrangulamento, forçando-o a ficar de pé, andando para trás, como se tentasse equilibrar o peso corporal, a fim de não ser asfixiado.  A luz do quarto se acende e ele observa imediatamente, a presença de Ângela.  Sentado numa pequena cadeira, ela tinha os braços estendidos para trás, imobilizados por cordas que amarravam seus pulsos.  Os lábios, pressionados por um pano espesso, na intenção de amordaçá-la, impediam-na de denunciar qualquer sinal de alerta, ao esperado amante.  Em pé ao seu lado, uma figura pouco conhecida por Victor, mas que pressumia ser a do caseiro; que ajudou a resgatá-lo do acidente.
- Calma, pare de se mexer !  Eu vou soltá-lo.  Só queria me certificar de que não teria alguma reação, da qual iria se arrepender.  - declarou a voz um tanto ofegante de Leminscky, diante das tentativas de Victor para se libertar.
Após soltá-lo, o jornalista o encarou, transfigurado por um ódio contido, monitorado pela premeditada calma aparente, de quem costuma executar sua vingança, sem se deixar entorpecer pela emoção.
- Quer dizer que você pensou que poderia afastá-la de mim ?...   Seduzi-la com sua lábia pervertida de terapeuta, fazendo-se passar pelos mesmos "príncipes encantados", que nunca a fizeram feliz ?  Sim, porque depois que realizar todas as suas fantasias sexuais mais imundas; simplesmente vai abandoná-la, como se minha filha não passasse de mais uma "putinha", na sua vida de playboy, não é mesmo ?  - acusou o pai indignado, desferindo um ágil e brutal soco no rosto, antes que Victor fosse capaz de dizer qualquer coisa.
Ângela começou a se debater na cadeira, forçando os pulsos para se soltar; emitindo grunhidos desesperados, como se implorasse ao pai, para que não continuasse a agredi-lo.
Victor, caído no chão, sentindo um filete úmido e quente de sangue, escorrer pelo canto do lábio, olhou de soslaio, pensando em revidar assim que o agressor se aproximasse.  No entanto, o desesperado esforço de Ângela, também aguçou paralelamente sua atenção, para o caseiro que a vigiava; e que ao notar estar sendo observado por ele, recuou a aba da jaqueta, expondo o revólver que trazia preso à cintura.  Leminscky acompanhou o olhar do oponente, para seu empregado, reparando na hesitação de seus movimentos e acrescentou: - Eu sei que você quer reagir.  Posso sentir a raiva aumentando seu batimento cardíaco.  Não se deixe intimidar pela arma.  Donato; não se atreva a usá-la !  Vou mostrar para minha filha, o covarde que ela escolheu para protegê-la.
Tão logo o psicólogo ficou de pé, o jornalista investiu novamente, cerrando o punho direito, para desferi-lo com toda a força, na altura do diafragma de Victor; ao mesmo tempo em que na sequencia, erguia velozmente o braço esquerdo, nocauteando-o, na altura da têmpora.  Vitimado por ambos os golpes, acabou tombando o corpo por sobre a cômoda, derrubando vários objetos que estavam sobre ela.  Ainda assim, manteve o raciocínio rápido o suficiente, para comentar sarcasticamente, a brutalidade que sofria.
- Isso tudo é porque ela me contou, que trepa com você por pena ?  Que está cansada de dar prazer a um pobre coitado, que precisa dos favores sexuais da própria filha, para ainda se sentir homem ?
- Seu desgraçado, eu mato você !
Antes que o agressor o alcançasse, Victor gira o corpo por sobre a cômoda, ficando de frente para ele, quando simultaneamente apoiando-se nos braços, consegue o impulso necessário para erguer e projetar a perna esquerda, acertando-lhe na região toráxica; arremessando de imediato, o jornalista contra a parede, perto da cama.
Leminscky ao sentir o impacto do golpe, tanto no peito, quanto na colisão de suas costas à parede, arqueia instintivamente o corpo, experimentando uma súbita dificuldade para respirar, pouco antes de um acesso de tosse, impossibilitando-o momentaneamente de reagir.  Victor direciona-se então, sem hesitar, suspendendo-o pelo colarinho da camisa, para encostá-lo mais uma vez violentamente contra a parede, colocando uma de suas mãos em concha em torno de seu pescoço, pressionando como se almejasse esmagar sua traquéia.
- Para mim chega, ouviu bem ?  Mande aquele seu capanga, libertar a minha mulher.  Caso contrário, eu acabo com a sua raça.  - ameaça Victor, demonstrando determinação em seu propósito.
Adriano Leminscky, sente-se pela primeira vez em desvantagem; cerrando os lábios, trêmulos de fúria, recusando-se a dar a ordem, ao mesmo tempo em que se ouve numa breve e tensa quietude circunstancial, o estalido de uma arma, sendo engatilhada.  Victor volta o rosto em direção ao caseiro, fitando-o com inalterada determinação, apesar de perceber estar na mira do atirador.
Nesse instante, a porta do quarto é aberta abruptamente; e ao entrar, dona Leonora emite um grito estarrecido, diante da trágica cena que poderia testemunhar.  Donato tem sua atenção voltada para ela; e aturdido, pede que saia imediatamente dali.  Este lapso de concentração, é suficiente para que Ângela levante com esforçada agilidade, o peso da cadeira, como próprio corpo, arremessando-se literalmente sobre o caseiro, a fim de desviar-lhe o foco da pontaria.  Numa fração de segundos antes que ambos tombassem  ao chão, o revólver é involuntariamente disparado.  Agora não se ouve mais nenhum outro grito; apenas o silêncio atônito da velha senhora que sente uma estranha ardência percorrer-lhe o ombro esquerdo, observando um filete de sangue, escorrer languidamente pelo braço.  Ela encosta na porta escancarada e sentindo uma súbita vertigem, começa a deslizar lentamente para o chão.
Ao ver que atingira dona Leonora acidentalmente, o caseiro recolhe a arma, guardando-a novamente à cintura.  Victor empurra Adriano, semi inconsciente, para a cama, adiantando-se ao encontro de Ângela, ajudando-a a se libertar.
- Meu Deus, o que foi que eu fiz, patrão ?!  Dona Leonora, fala comigo; não vou deixar que nada de mal aconteça !  Não feche os olhos; fica com a gente !  - implora Donato, arrancando a camisa, para envolvê-la em torno do ombro da governanta.
Ao tirar a mordaça, desamarrando-a; a jovem abraça Victor, chorando copiosamente.
A esta altura, o jornalista já começa a se sentir melhor; observando a respiração normalizar, os espasmos musculares cessarem, embora a traquéia, ainda estivesse bem dolorida.  Ergueu os olhos para dona Leonora, quase desfalecida, sendo acudida por Donato.  Nesse momento, ajoelha-se sobre o colchão, com uma expressão de cansaço, sem conseguir acreditar no que estava acontecendo; e passando as mãos ao longo do semblante, encharcado pela transpiração, tentou pronunciar-se, tendo a voz assumido a entonação de um sussurro, devido a seu impactante lamento.
- Viu o que fez conosco ?  Salvamos você e o que nos deu em troca ?  Discórdia, agonia, loucura ...  Olha o que me obrigou a fazer com minha própria filha !  Nunca havia levantado a mão para ela; nem naqueles momentos de vida, em que estive mais fora de mim.  E me levou a tratá-la como uma prisioneira, para que pudesse salvá-la de um destino bem mais terrível, permanecendo ao seu lado.
 - Patrão, acho que a bala passou de raspão.  Mas ela está muito fraquinha, precisamos levá-la ao hospital.
- Posso cuidar dela, Donato.  - interveio Ângela.  - O desmaio deve ter sido mais em função do susto, do que pela gravidade do ferimento.  Procure deitá-la aqui na cama, até eu voltar com o estojo de primeiros socorros.
- Filha, me perdoa; por favor !  Eu não queria que fosse assim.Eu juro !
Ângela olha para o pai, totalmente desiludida.
- Não se preocupe, meu pai.  Se o preço para não nos deixar cair em desgraça, é o de permanecer aqui, você venceu !  Seria penoso demais para mim; levar esta situação às últimas consequências.  Mas tão logo, o homem por quem estou verdadeiramente apaixonada, esteja longe do seu alcance; nós vamos ter uma longa e definitiva conversa.  Agora, preciso cuidar da única pessoa, que não merecia ter sido vítima do seu ódio. 
- Posso ajudá-la de alguma forma ?  - indaga Victor, acompanhando atentamente a movimentação do caseiro, ao conduzir dona Leonora até a cama.
- Volte para o quarto e me espere lá, até terminar o procedimento.  Não acredito que papai tenha coragem de voltar a hostilizá-lo, depois do que aconteceu.  - aconselha Ângela, baixando o tom de voz.
- Não vou deixá-la sozinha !  - enfatizou Victor, segurando-a pelo braço.
- Por favor; ele não irá me fazer mal.  - contemporiza Ângela.  - O alvo de tudo isso era você.  Saberá me ouvir, desde que esteja seguro de que não irei abandoná-lo.
Meneando a cabeça positivamente, Victor faz um gesto de carinho nos cabelos dela, encaminhando-se em direção à porta.
O jornalista, já de pé, acompanhava a conversa entre ambos, ainda guardando na fisionomia, os traços de sua alteração emocional; porém contenta-se em proferir uma última advertência.
- Amanhã cedo, quero você longe desta casa !  Donato poderá levá-lo até a rodoviária. Em total segurança, eu prometo.  - acrescenta, direcionando o olhar para filha, a fim de convencê-la de sua sinceridade.
Victor limita-se a fitá-lo impassível, evitando emitir qualquer comentário, que reascendesse aquela incendiária e incontornável rivalidade; partindo silenciosamente pelo corredor.
Quando os três ficaram sozinhos no aposento, Ângela iniciou a limpeza do ferimento, apressando-se em preparar o curativo, observando que dona Leonora ia aos poucos recobrando os sentidos.  A velha senhora ainda preservava no olhar, a mesma expressão atônita, anestesiada pelo estranho torpor, que o estresse do medo lhe causara.
Adriano, sentado numa antiga poltrona, lateral à cama, mais ao fundo do quarto, não esboçava qualquer reação, vivenciando solitariamente sua particular angústia.  
Ao concluir o procedimento de enfermagem; Ângela estendeu a mão discretamente para Donato, voltando o olhar em direção a arma presa em sua cintura, para em seguida fitá-lo de forma imperativa, como se o responsabilizasse diretamente, pela iminência de uma tragédia familiar.  Momentaneamente indeciso, o caseiro buscou na fisionomia do jornalista, algum sinal de autorização, uma vez que o revólver pertencia a ele; mas não ousou interromper a introspecção melancólica que parecia dominar Leminscky; preferindo então, retirar o perigoso objeto, visivelmente constrangido, deixando-o sobre a guarda de Ângela.  Em seguida, ela pediu ao pai e a Donato, que se retirassem; e abraçando carinhosamente a governanta, ainda abalada emocionalmente, alegou que ela precisaria descansar e que dormiriam juntas aquela noite, no seu quarto.  Donato não demorou a se ausentar, embora Adriano resistisse a ideia de ir embora, apesar da filha insistir novamente.
- Está bem, eu vou deixá-las em paz.  Mas antes me responda uma coisa: Por que ameaçar uma vida tão calma e feliz, trocando-a pelo sabor incerto e fatalmente amargo, de uma aventura ?  Porque sabemos, como essa idílica história romantica vai terminar...
Procurando manter a serenidade, ela tentou escolher as palavras, para não ferir com a honestidade de seus sentimentos, a instável autoestima de seu pai.
- De certa forma, eu não lhe tiro a razão.  Nossa vida tem sido delirantemente calma.  mas estávamos nos anestesiando, papai.  Tentando compensar um no outro, carências das quais jamais nos libertamos.  Esta calma a que se refere, nunca combinou com minha ideia de felicidade.  Amo você como pai, como homem; mas de uma forma diferente.  Nem sempre quebrar tabus, significa alcançar a plenitude.  A cumplicidade sexual não coincide necessariamente com o arrebatamento amoroso, que só a paixão nos oferece.  E apaixonar-se tem a ver com risco; possibilidade de perder, conquista extasiante ao se ganhar.  Falta-nos o prazer do desconhecido, pai !  Até para decidirmos o que fala mais alto em nosso coração, precisamos abandonar o pânico de revisitar o mundo; e ver o que ele reserva, de bom ou de mal, sem que isso nos destrua.
Ângela sentiu um toque suave sobre a mão direita, segurando-a firmemente e voltou-se para dona Leonora, que parecia querer comunicar com seu gesto, a aprovação por cada palavra que dissera.  Leminscky tinha o semblante abatido, sensibilizado pelo maduro discernimento da filha, porém sentia-se incapaz naquele momento, de se descobrir forte o suficiente, para questionar sua solitária ilha de valores egocêntricos.  Levantou-se e abrindo mão de qualquer argumento, ao aproximar-se da cama, não se furtou de arriscar uma menção de afeto, inclinando-se vagarosamente, para beijar a testa de sua filha.
- Durmam bem, vocês duas.  Amanhã, teremos um longo dia pela frente.  - despediu-se, atravessando o quarto, a carregar sobre os ombros, o peso da derrota  paterna.
Horas depois, a casa repousava no tranquilo esquecimento da madrugada.  Ângela verificou pacientemente, quando dona Leonora pareceu mergulhar em sono profundo.  Saindo da cama cuidadosamente, vestiu a camisola branca sobre a lingerie de mesma tonalidade, meneando os cabelos caprichosamente, enquanto caminhava até a porta, abrindo-a bem devagar.
Atendendo a insistente e discreta batida em sua porta, Victor não demorou a abri-la, permitindo a entrada de uma visita tão esperada.
  - Desculpe pela demora, meu amor.  Mas precisava me certificar de que nada conspiraria contra nós, desta vez.
- Posso confiar, de que fará tudo para encontrar comigo ?
- Claro que sim.  A história com meu pai, é um capítulo encerrado na minha vida.
Fitando-o maliciosamente, Ângela desceu levemente a taça do sutiã, a procura de um pequeno souvenir, para mostrar a ele.  
- Este é meu celular.  Guarde o meu número e deixe o seu gravado nele, junto com seu e-mail.  Em breve, terá notícias minhas.  Prometo não retardar demais nosso reencontro.
- E o que será de mim, até lá ?  - indagou Victor em tom galanteador.
Ângela retribuiu sensualmente o gesto, passando a língua insinuantemente por entre os lábios, antes de esboçar um atrevido sorriso de menina.
- Poderá colecionar na lembrança, cada curva do meu corpo, cada instante de prazer, depois dessa noite de despedida.
Olhando-o dentro dos olhos, abriu lentamente a camisola, deixando-a deslizar até o chão.  Em seguida, retirou o sutiã languidamente, jogando-o em direção a cama, pouco antes de ladear os braços por sobre os ombros de Victor, entregando-se ao abraço ansioso; buscando avidamente, reviver o sabor daquele beijo.
Pela manhã, o brilho solar e o céu azulado, limpo de nuvens, já anunciavam um permanente reinado, após a tumultuada temporada chuvosa.
Ângela já habitava a clausura voluntária de seu próprio quarto, contemplando pela janela, sem descuidar-se de manter o rosto parcialmente oculto pela fresta da cortina; os derradeiros preparativos para partida de Victor.  O caseiro Donato suspendia o porta malas, acomodando a bagagem do conformado psicólogo, enquanto este trocava algumas palavras, agora de maneira bem mais civilizada, com o dono da propriedade, que não conseguia dissimular um indisfarçável ar de superioridade e alívio, por ver aquele indesejável hóspede, prestes a sair definitivamente, de sua vida familiar.
Victor levantou a cabeça em direção a lateral da casa, que dava para garagem, tentando identificar a fisionomia da jovem, por trás de alguma das janelas.  No segundo quarto, avistou o que procurava, acenando para ela demoradamente, a ignorar a reação do jornalista, que permanecia impassível.  Ângela retribuiu num gesto tímido, recuando logo em seguida, quando fechou a cortina.  Se desejavam passar a estratégica impressão de uma amarga despedida de casal; os dois possuiam uma invejável improvisação cênica.
Donato abriu a porta do carro aguardando formalmente a entrada do psicólogo; que após a silenciosa despedida, caminhou até o veículo, acomodando-se no banco do carona, evitando encarar novamente, o semblante austero de Leminscky.  O caseiro assumiu o volante, meneando a cabeça para o patrão, em sinal de obediente cumplicidade, antes de dar a partida, distanciando-se aos poucos do casarão.
O restante do dia transcorrera numa apática ausência de acontecimentos, contrastando com a incendiária tensão da noite anterior.  Adriano e Ângela, mal trocaram palavras, isolando-se pelos cantos da casa.  O pai tomara o café da manhã sozinho, embora ela tivesse assumido a cozinha, poupando a governanta, ainda convalescente, de um cansaço desnecessário; preparando algo para as duas, que depois levaria até seu quarto.  Durante o almoço, dona Leonora, demonstrando estar mais disposta, foi se juntar a eles em torno da grande mesa da sala de jantar.  No entanto, uma atmosfera de evidente animosidade ainda imperava entre pai e filha; na verdade mais por parte de Ângela, que monossílabicamente respondia a uma ou outra observação casual proferida por Adriano; resistindo a retomar o entrosamento tão rotineiramente afetuoso, que sempre prevaleceu entre eles.
Ao final da tarde, a crepuscular luminosidade já se despedia na paisagem montanhosa, quando Adriano, sentindo falta da parceria de sua filha, quando esta colaborava frequentemente com suas pesquisas jornalísticas pela internet, sabendo lidar como ninguém, em relação as nuances de funcionamento de seu velho computador; resolveu então, assumir a iniciativa de desfazer aquele frio distanciamento, que prometia se consolidar durante a convivência.  Quando se direcionou até o corredor, percebeu mesmo com a porta daquele quarto fechada, um feixe de luz artificial, projetando-se por debaixo dela.  Era o quarto de sua falecida mulher, do qual Ângela também tinha uma chave, visitando-o tanto nos momentos em que sentia saudades da figura materna, como quando programavam seus encontros noturnos.
- Estou surpreso de vê-la por aqui.  - ressaltou prontamente, sem bater à porta, enquanto adentrava ao quarto.  - Costumava ficar horas sozinha, toda vez que estava em conflito e procurava um lugar calmo para meditar, como se buscasse uma forma de sintonia espiritual com sua mãe.  Admiro e respeito este lado ritualístico, com que preserva a memória dela, dentro do seu coração.
Ângela, acomodada em posição de lótus sobre a cama, remexia em específicos pertences de sua mãe, retirando-os de algumas caixas de papelão; como se escolhesse o que mais lhe agradava, separando-os a um canto do colchão.  Durante a fala do pai, pareceu nem lhe dar atenção, continuando sua atividade sem a menor vontade de encará-lo nos olhos.  Não se abatendo por sua aparente indiferença, ele prosseguiu, sem qualquer constrangimento.
- Tudo bem; se o preço para voltarmos a nos falar é o de instituirmos a hora da verdade, vamos lá, então !  Dona Leonora já havia me comentado sobre o clima de sedução, que imperava entre vocês.  Achei aquilo a princípio até normal, já que você é tão jovem e como toda mulher nessa idade, ainda suscetível a encantamentos ardentes, tão intensos quanto pueris; quando finalmente a "ficha" da realidade acaba caindo.  Apesar de saber de todas estas circunstâncias, não vou negar que fiquei enciumado.  Sim, fiquei; embora não me sentisse ameaçado.  Mas quando soube de tudo que contou para ele sobre nós, mais uma vez através da inestimável fidelidade de minha governanta, cujo papel nessa casa foi acima de tudo, zelar por você e pela nossa paz; aí sim, me senti apunhalado pelas costas.  E sabe por que ?  Por não ter tido a coragem de dizer o que de fato se passava no seu coração, olhando bem no fundo dos meus olhos.  Se houve um motivo tão forte para negligenciar todos os momentos tão puros, intensos e da mais confiável certeza de um amor pleno entre nós, é porque a falha deveria ser minha.  Reconheço que às vezes, por este meu lado introspectivo, acabo me isolando dentro de mim; fechando os olhos sem querer, às mais sutis necessidades de quem está a meu lado.  Com sua mãe, era a mesma coisa.  Mas prometo que posso mudar; fazer de tudo ao meu alcance para continuar a satisfazê-la; para continuar a torná-la feliz.
- Chega, pai !  Não quero ouvir mais nada.  - enfatiza Ângela lacônicamente, alterando o tom de voz.
A surpresa do jornalista, faz com que se cale imediatamente, sem saber como se comportar diante da surpreendente reação de Ângela.
- Se vamos jogar com a verdade, pondo as cartas na mesa, que tal começarmos por essa fixação doentia, capaz de projetar sobre outra mulher, sem respeitar seus sentimentos, suas vontades, o espectro amoroso de algo que jamais poderá continuar existindo.  Apesar da semelhança física com minha mãe, somos mulheres distintas, completamente diferentes.  Será que nunca vai entender isso ?  Tentando mudar uma triste realidade inevitável, jogou a sua vida durante um bom tempo, no fundo do poço.  Eu já não o reconhecia mais.  Era como se um duplo de você, o afastasse cada vez mais de mim e da própria sanidade.  Tenho certeza de que viveu coisas, das quais jamais me contou, para não culpar-se pelo meu sofrimento; para não desconstruir aquela imagem heroica que durante tantos anos, foi o alicerce de nossa família.
- Por que está me dizendo uma coisa dessas ?  Pensei que tinha me perdoado pelos erros que que cometi.  Sabe muito bem, o esforço que fiz, para me reerguer da própria ruína.
- Mas nunca soube, pelo menos até agora, o preço que pagou para esconder de mim, coisas muito mais sérias.  Efeitos colaterais muito mais monstruosos, do que aqueles provocados por auto piedade ou inconsequentes aventuras promíscuas.
- Ângela, você está me assustando.  Do que diabo, está falando ?  - exasperou-se, Adriano.
- Disso aqui, meu pai !  - Ângela resgata em meio aos objetos que havia previamente selecionado, uma portátil câmera de filmagem, como as usadas por documentaristas amadores.  Ao acioná-la, exibe a imagem recém pausada, de uma mulher desesperada, implorando pela própria vida, gritando por um nome que Ângela desconhecia; e que provavelmente seria o do homem que se dispôs a realizar aquela macabra filmagem; onde a vítima indefesa, era alvo das investidas contundentes e brutais de um obstinado agressor, que a esfaqueava repetidas vezes, provavelmente instruído pelo mentor daquela gravação.
O jornalista olha estarrecido para aquela sequencia bárbara de imagens, fazendo menção de aproximar-se para arrancar o objeto das mãos da filha.  Nesse instante, Ângela estica a mão rapidamente para debaixo do travesseiro, retirando o revólver, que não hesita em apontar, com absoluta segurança, na direção do pai.  Era a própria arma de uso particular dele, que ela induziu o caseiro a devolver-lhe na noite anterior.  
- Não tenho nada a ver com isto; o que pensa que está fazendo ?
- Apenas querendo esclarecer um velho fantasma do passado.  Está vendo o dia da gravação, fixada no canto esquerdo da imagem ?  Data de um ano atrás, na época em que finalmente me prometeu, nunca mais esconder as merdas que fazia por aí, nos antros que frequentava.  Foi na mesma época que a sociedade carioca tomou conhecimento pela primeira vez daquela chacina hedionda, apelidada pela mídia em função daquele fenômeno raro que acontecia nos céus, naquela noite: "os crimes da lua de sangue".