EPÍLOGO
Numa casa de estilo colonial, entre tantas construções tradicionais, distribuídas pelos íngremes acessos de Santa Teresa, o interfone é acionado altas horas da noite e ao ser atendido, uma voz familiar identifica-se, carregando na entonação irregular de sua voz, a marca de uma estressante expectativa, como se tivesse sobrevivido a travessia de uma tortuosa fronteira entre a clausura do passado e a redentora esperança, de um presente imprevisível.
A porta se abriu e antes de qualquer palavra, o calor humano de um forte abraço, falou mais alto, unindo corpos que dialogavam no silêncio de olhares e afagos, de genuína cumplicidade.
- Parece um milagre, poder estar aqui com você ! - garantiu Ângela, quase num sussurro aliviado, ao término daquele abraço.
- Assim que me ligou no final da tarde, já percebi que algo muito grave havia acontecido. De uma certa forma fiquei feliz, por ter sido tão corajosa em cumprir o que prometemos um para o outro; mas estranhei a rapidez dos acontecimentos, além de sua tensão ao telefone. Mas o importante, é que agora estamos juntos ! E seja o que for que venha pela frente, teremos mais força para superar, não é mesmo ? - considerou Victor, numa voz calma, assertiva, procurando capturar no olhar evasivo de sua amada, um intuitivo esclarecimento por mais superficial que fosse, sem que precisasse incomodá-la com o que poderia ter precipitado a fuga de sua casa.
- Tem razão. O importante é que vencemos; a tudo e a todos que não esperavam que chegaríamos tão longe. Mas não quero falar agora, do que me trouxe desesperadamente até aqui. Estamos seguros, é o que importa. Ajude a pegar as minhas coisas lá no carro. No turbilhão, virando a minha vida de cabeça para baixo, ainda consegui lembrar assim que cheguei ao Rio, de trazer um toque de sofisticação ao nosso reencontro; escolhendo um delicioso vinho, para abençoar a nossa longa madrugada.
- Tudo bem. No momento certo, sei que saberá dividir comigo, o que realmente aconteceu. Nos planos de vida que vamos construir juntos, não deixaremos brechas para surpresas desagradáveis do passado. - concluiu Victor, apressando-se a beijá-la, com irresistível voracidade, inteiramente correspondida pela sensual ternura de Ângela.
Mais tarde, no quarto, taças de vinho jaziam pelo chão, entre peças de roupa abandonadas em desalinho, como se testemunhassem silenciosamente, o harmonioso encontro de corpos entrelaçados, entregues a sua nudez libertadora, mapeada pelo toque sutil de carícias inimagináveis; senha secreta na linguagem dos amantes. Ambos agora, procuravam inteiramente rendidos a paz extasiante daquele abraço acolhedor, que intuitivamente prometia guardar, na intimidade da respiração e do aroma quente da pele, a memória sensorial da paixão compartilhada.
Ângela ergueu lentamente a cabeça do peito de Victor, observando-o em sua breve sonolência, antes de prosseguir em seu movimento, ausentando-se cautelosamente da cama. Foi até a janela que estava aberta, buscando sobre a cômoda o isqueiro e o maço de cigarros; para depois sentar-se numa cadeira próxima, ficando a contemplar a solitária visão da rua, por vezes maculada pela rara presença de um ou outro veículo, que por ali transitava. Acendeu o cigarro e tragando-o profundamente, a experimentar um agradável torpor, percorrer-lhe todo corpo, expirou a fumaça em direção a janela.
Pressentindo após alguns minutos, a falta de proximidade de Ângela, ele abriu os olhos, fitando momentaneamente aquela bela imagem da nudez feminina, delineada em sua intimidade, pela pálida luminosidade do luar.
- Fixação emocional na fase oral... Precisamos remover este vício. Nada que uma boa sessão de hipnose não resolva ! - comentou ironicamente Victor; rompendo a quietude do quarto ao despertar o sorriso imprevisto, no rosto de Ângela.
- Como amante do meu terapeuta, terei custo zero no meu tratamento. Prazer e vantagem em todas as situações deviam caminhar juntos, não acha ? - complementou no mesmo tom de humor, tragando novamente o cigarro. - Herdei o hábito, da convivência com meu pai. Por mais que a gente tente fugir, o passado sempre nos acompanha de alguma forma.
- Pronta para me contar o que aconteceu ? - sugeriu apropriadamente, motivando-a a desabafar.
- Acredita em destino ?
- Como assim ?
- Que a vida é constituída de ciclos, de reedições intermináveis, que mais cedo ou mais tarde, fazem você reviver, coisas que outros já passaram; especialmente dores, angústias, memórias, que pareciam perdidas no tempo ?
- Está filosófica demais. Será que abusou do vinho, tanto quanto eu ? - brincou Victor.
- Engano seu. Nunca estive mais lúcida. Eu descobri uma coisa sobre o passado do meu pai, que ele jamais imaginou que chegasse ao meu conhecimento.
- A que está se referindo ?
- Sabe naquele dia, quando durante o almoço, explanou sobre a natureza dos psicopatas ? Deveria ter incluído na relação, entre tantos perfis de suposta superioridade; uma fraqueza em comum. Todos acabam se revelando, por um compulsivo capricho de vaidade. Como o de registrar determinadas atrocidades que praticam,só pela tentação de reverem o próprio sucesso.
Victor não disse mais nada, encarando-a com ambivalente curiosidade; como se receasse pelo que iria lhe dizer, ao mesmo tempo em que precisasse estar consciente daquela revelação.
- Depois de fazer a minha mala, preparando-me psicologicamente para uma conversa definitiva com meu pai durante o jantar, lembrei-me de levar algum objeto de uso da minha mãe, como uma espécie de souvenir, não só para tornar mais viva minhas recordações de infância, como também para dar sorte, neste novo projeto de vida. Foi quando estive no quarto dela, que encontrei escondido por debaixo de algumas de peças de roupa, um estranho objeto, que não pertencia às coisas dela e de certa forma, incriminava meu pai, por ocorrências terríveis cometidas num passado bem recente. Estou me referindo a participação dele, nos crimes da "lua de sangue".
- E o que a levou a pensar que ele poderia estar envolvido numa história tão mórbida; já encerrada pela justiça ? - indagou Victor, levantando-se com certa exasperação, quando sentiu uma episódica sensação de vertigem.
- Você está bem, meu amor ?
- Claro; acho que me movi muito rápido e saí um pouco do prumo. Devo ter bebido além da conta. - justificou-se, embora aparenta-se não dar muito crédito às próprias palavras. - Mas continue... - incentivou ele, dirigindo-se até armário de roupas.
- Encontrei uma câmera digital, dessas que estudantes de cinema ou cinegrafistas amadores, costumam utilizar para documentar fatos do cotidiano. E lá estava um verdadeiro arquivo de breves gravações domésticas; que ajudavam a elucidar alguns pontos cegos na história verdadeira daqueles assassinatos; que nem a polícia ou a promotoria foram capazes de evocar. Meu pai entrou no quarto, sem que eu esperasse, assim que terminava de assistir completamente perplexa ao último vídeo; o mais aterrador de todos, onde presenciei o frio ritual de execução de uma mulher indefesa, que implorava por misericórdia.
Victor escutava, enquanto abria o armário e agachando-se, procurou por alguma coisa guardada, na última prateleira do móvel. Ângela continuou o relato, cônscia de que apesar de Victor permanecer inapropriadamente na sua ocupação, continuava a deter sua atenção, no rumo das palavras.
- Quer dizer que no seu entendimento, Adriano Leminscky seria o suposto segundo homem naquela casa; responsável intelectual pela indução de todo aquele cerimonial de assassinato /
- Foi o que deduzi, pela observação dos vídeos.
- E deixaria você ir embora, levando consigo o seu segredo ? - indagou o psicólogo, depois de puxar sua mala para fora, descortinando um dos zíperes, que dava acesso a um compartimento secreto para guardados.
- Eu ainda portava a arma, que ele tinha emprestado ao caseiro. Quando tentou se aproximar de mim, apontei para ele, engatilhando-a, pronta para usá-la se necessário. Ordenei que me desse as costas e sem saber ao certo o que fazer, golpeei sua nuca, trancando-o no quarto. E então parti para meu plano de fuga. Dona Leonora estava convalescendo e Donato ainda não havia retornado. Pela primeira vez, tudo conspirava a meu favor !
- Só uma coisa não se encaixa na sua história. - ressaltou Victor, logo depois de verificar seus guardados, erguendo-se do chão com certo vagar. - Por que levou o revólver, de forma premeditada até o quarto, se ainda não desconfiava da culpabilidade de seu pai ? E mais um detalhe que me intriga... - considerou ele, voltando-se para Ângela, segurando firmemente em sua mão direita, um reluzente e pontiagudo objeto metálico. - Por que andou mexendo nas minhas coisas, pegando algo que não lhe pertencia ? Vamos acabar com esse teatro. A quanto tempo sabia que a filmadora era minha ?
Ângela não aparentava estar nem um pouco surpresa com a reação discretamente hostil de Victor; permanecendo sentada; o mesmo olhar sereno, sem mover um músculo.
- Desde a noite do acidente; quando a encontrei no fundo falso de sua bagagem, Victor; ou será Marcos ?... São tantas identidades e tão pouco caráter, não é mesmo ? Eu descobri naquele momento, que você seria o meu passaporte para a liberdade. Afinal, qual o percentual de probabilidade para se achar uma alma gêmea, naquele lugar isolado, esquecido, distante de qualquer possibilidade de reverter o próprio destino em todos os sentidos ?
Victor tentou adiantar os passos até ela, mas sentiu dessa vez as pernas fraquejarem e a visão, tornar-se inesperadamente turva, resultando imediato desequilíbrio corporal, fazendo-o cair de joelhos violentamente contra o chão, impactando justamente o pulso onde até então, segurava aquela intimidadora faca de caça.
- O que colocou na minha bebida, sua cadela ? Você me dopou !...
- Calma, olhe o linguajar. Sua maior qualidade, sempre foi o cavalheirismo. - comentou sarcasticamente Ângela, apagando o cigarro com veemência contra o parapeito da janela. - Eu precisava da câmera para surpreender meu pai, ainda que as acusações fossem infundadas, criando o clima necessário para abandonar aquela casa. Ele entenderia minha histérica reação e culparia você por tudo, concentrando seus esforços para localizá-lo pensando que estaríamos juntos. Assim que descobri naquele extenso compartimento, além da filmadora, daqueles estranhos frascos farmacêuticos, aquela enorme quantia em dinheiro; provavelmente fruto de seu último golpe, extorquindo ou ludibriando através de manobras sentimentais, aquela velha carente, que sustentava todos os seus caprichos; me veio a ideia de trocar a câmera original, por outro objeto, dentro da sua pochete de couro. Na verdade, como pôde observar agora, pela antiga máquina fotográfica de minha mãe. Tendo livre acesso tanto ao quarto, como a sua confiança, efetuar a troca no momento masi adequado, não foi difícil. Apostei comigo mesma, que na medida em que ainda se sentisse seguro com seu segredo, nunca desconfiaria da pobre donzela, aguardando ser salva pelo heróico forasteiro. Não é que a mitologia dos contos de fada, ainda funciona no imaginário masculino ? Talvez por se sentir dono da situação, não tenha lhe ocorrido vasculhar detalhadamente sua mala. Como vê, a sorte sempre premia a ousadia.
Victor ainda fez um último esforço para levantar e não conseguindo, tentou arrastar-se portando a faca na outra mão, tentando superar o torpor anestesiante que ameaçava paralisar em pouco tempo, a maior parte de seus movimentos. Ângela finalmente ergueu-se da cadeira, contornando o corpo do amante, como se o desafiasse com sua altiva tranquilidade.
- Sua obstinação para vencer a qualquer custo, é de fato admirável. Só que nós dois sabemos que a dose química que destilei na bebida, deve ter sido coincidentemente proporcional, a que administrou naquelas pobres mulheres, que assistiram conscientemente imobilizadas, a crueldade de sua sentença. - anunciou Ângela, acomodando-se confortavelmente na cama, enquanto observava o esforço inútil do parceiro por reagir a progressiva imobilização de seus movimentos.
- Parabéns, minha menina. Mas se pensa que vai ser tão fácil se livrar de mim, está enganada !
- Mas não lhe quero mal, meu amor. Apenas preciso dar um jeito na minha vida. E graças a você, terei os rendimentos necessários para isso. Na verdade, agradeço por ter sido minha inspiração. Se não tivesse atravessado o meu caminho, esta outra mulher, forte e determinada, que sempre existiu dentro de mim, jamais teria aflorado. Quando assisti ao registro das gravações, foi que comecei a juntar as peças no tabuleiro do seu jogo mental. O comparsa de seus crimes, não era um marginal comum; mas sim, uma personalidade fragilizada. Um rapaz que enfrentava problemas com a ocultação de sua homossexualidade. Ele foi procurá-lo secretamente, pedindo ajuda para poder enfrentar o conservadorismo homofóbico do pai, que insistia em casá-lo com uma jovem da alta sociedade, possibilitando através desta união o somatório do patrimônio de ambas as famílias. Mas a opção sexual de seu cliente, bem como o caso que mantinha às escondidas, com um amante de longa data; o colocaram numa dramática encruzilhada. Foi então, que você propôs durante as sessões, fazendo uso da hipnose, que o ajudasse num plano mirabolante, que salvaria os dois, de incômodos problemas. Você o ajudaria a se livrar da noiva, permitindo que continuasse a viver o caso amoroso; em troca dele colaborar no sumiço de uma moça; que passou a ameaçar o futuro promissor que construíra com aquela rica senhora, que o tirou do limbo, transformando todos os seus sonhos em realidade; descartando de sua vida, aquela ex-garota de programa, com quem mantinha um caso duradouro; evitando que ela jamais contasse a verdade a sua protetora. Para que a montagem daquela farsa mística, fosse de fato eficiente, faltava se desfazer da última peça do seu jogo: seu próprio cliente. Dando prosseguimento ao processo de sugestão emocional, pelo uso imperativo da hipnose, induzi-lo a uma culpa insustentável e ao consequente suicídio, na mesma cena do crime, não foi uma tarefa fácil, mas ao final bem sucedida. Ameaças descartadas; aproveitar-se durante o tempo que passou, dos benefícios financeiros proporcionados por aquela inofensiva senhora, foi a parte mais interessante da história. Principalmente enquanto a envenenava lenta e imperceptivelmente, levando-a a óbito, sem despertar maiores suspeitas. Dinheiro no bolso, passaporte providenciado para tentar a sorte no exterior; só não contava ser pego de surpresa, por aquele infeliz acidente, quando certamente voltava da casa de sua falecida companheira. Pulei algum detalhe significativo, meu amor ?
Conseguindo virar o corpo para trás, esgueirando-se até a parede, Victor fez um derradeiro esforço para encostar-se na superfície, , sendo obrigado a abandonar a faca, para executar aquela difícil manobra física. Ângela contemplava seu esforço com uma ponta de orgulho, apreciando o empenho da presa até então acostumada a estar no controle, a buscar não só sobreviver, mas reverter de alguma forma, a situação que o vitimava.
- Sabe de uma coisa ? É decepcionante ver o quanto me usou durante tão pouco tempo, para decidir me trair, justamente no momento mais decisivo de sua própria vida. Não pode negar a sintonia que existe entre nós. Somos feitos da mesma "argila" genética. Poderíamos reinar juntos em qualquer lugar, desde que fôssemos sócios de verdade, na cama e nos negócios. Mas a inveja e a paranóia feminina, falaram mais alto, jogando-a contra a única pessoa no mundo, capaz de entendê-la.
- Ponto para você; gostei da sua lábia. Bem mais gentil, na medida em que percebe estar indefeso frente às escolhas que tenho a minha disposição.
- Escolhas ? Nesse território desconhecido, não passa de uma amadora. Precisou e ainda precisa de mim, para planejar o seu futuro.
- Nada disso, meu querido. Chega de homens, ditando o que devo fazer de minha vida. Tenho de admitir o quanto seria tentador continuar a viver esse caso apaixonante. O sexo com você é maravilhoso; mas também infinitamente traiçoeiro. Não conseguiria permanecer a meu lado, sem continuar a dar as cartas, guardando o velho ás na manga, sempre com o blefe perfeito, na ponta da língua. Ficar presa a memória de bons momentos na cama, foi o que sempre derrotou mulheres de gerações anteriores. Estou evoluindo; não só nos métodos, como na própria essência feminina. Já reparou ultimamente, como não existem estatísticas a respeito de mulheres psicopatas ? E já devemos se em maior número... A razão para isso, é nossa sutileza; optando por reinar nos bastidores, do óbvio poder masculino. Poder movido a vaidade, que só os expõe cada vez mais, levando-os a inevitável captura e derrota. Agora, deixa eu colocá-lo confortavelmente na cama; que tenho muitas providências a tomar, antes da minha partida. - argumenta Ângela, levantando-se prontamente, ansiosa por dar continuidade as suas ideias. Abaixando-se sem o menor receio, ela procura erguer Victor pelos braços, como uma legítima enfermeira, prestando auxílio ao cliente fisicamente debilitado. Demonstrando uma segura sustentação muscular, arrasta-o delicadamente até o colchão, ajeitando-lhe o corpo, enquanto acomoda o travesseiro sob sua nuca.
Victor observa-lhe o toque gentil, a postura cuidadosa, expressando no seu rosto um sorriso debochado, que chama a atenção de Ângela.
- O que lhe parece tão divertido ?
- Nada. Estava só refletindo sobre você.
- Já que não temos mais segredos... Por que não me diverte um pouco também ? - ironiza Ângela.
- Estava pensando numa garota mimada, superprotegida por uma família conservadora, onde apesar de sempre se perceber como uma espécie de "estranho no ninho", nunca machucou ninguém.
- Como você pode saber ?
- Somos almas gêmeas, lembra-se ? Um predador conhece os instinto do outro. E você nunca experimentou extrair prazer, do ato de torturar ou matar alguém. Até entre pessoas como nós, existem níveis de ascensão. E você ainda não está no topo da cadeia alimentar. - analisa Victor, sem omitir o sarcasmo.
- É mesmo ? Quer dizer que sou tão previsível...
- Pelo contrário, é uma mulher surpreendente. Com um senso de objetividade, bem maduro para sua idade. Mas também não pode virar as costas às tentações juvenis, que cercam garotas educadas no epicentro da moralidade cristã; quando de repente, se libertam das amarras.
- E o que garotas como eu, desejam da vida ?
- A princípio, trepar alucinadamente, como se não houvesse amanhã; depois, conhecer o mundo lá fora, esperando encontrar algo diferente daquilo que já estão saturadas de conhecer, em sua restrita gaiola familiar. Por isso, se pensa que vai fugir com meu dinheiro, mudar o visual, trocar de identidade, de país
Ângela olha-o com certo desdém, como se suas palavras intimidatórias não a atingissem. Volta-se para a faca caída ao chão e aproxima-se, pegando-a com um misto de estranhamento e fascinação.
- É uma peça assustadora, porém muito bonita.
- Para quem sabe usá-la, pode ser um troféu ! provoca Victor.
- Mas você não sujou as mãos de sangue, naquele duplo assassinato. Embora tenha realizado algo muito mais mórbido: fazer alguém matar por você.
- Nem sempre a vida me sorriu generosamente. Até encontrar meu porto seguro com aquela boa senhora; quando vivia sozinho e sem perspectiva pelo mundo, digamos que fiz o necessário para sobreviver... O tempo, só fez refinar meus métodos. Mas com você, foi diferente. Dedicou-se a cuidar da sua mãe; contentou-se em fugir do machismo de outros homens, escondendo-se nos braços de um pai amado; e quando teve a chance de manusear uma arma, não experimentou o impulso irresistível, de voltá-la contra aquele que lhe aprisionava. Ferir literalmente outro, definitivamente ainda não faz parte de seus atributos.
Ângela fixa o olhar demoradamente sobre ele, aconchegando o letal objeto metálico entro os dedos, com uma determinação tátil bem resoluta, como se ela e a faca, fossem velhas conhecidas. Caminhando lenta e sensualmente, ostentando ao voyeurismo desejoso de Victor, sua provocante nudez, ela sobe na cama abrindo as pernas em torno do corpo do amante, descendo calmamente, para ajoelhar-se no colchão, um pouco acima de sua cintura, quando ele já começava a experienciar uma onda de torpor anestesiar-lhe aos poucos, o movimento da mandíbula; o que em breve inibiria sua comunicação com Ângela. Inclinando-se, ela chega a encostar os seios sobre seu tórax, desenhando com a lâmina, todo o contorno fisionômico de Victor.
- Qual o nome dela ? Daquela que venerava você e terminou implorando pela vida, enquanto gravava aquele vídeo ?
- Vanessa... - respondeu ele com certa dificuldade, sentindo a articulação da fala bastante limitada.
- De repente quando olhei para você, a medida em que me aproximava da cama, tive uma sensação estranha... Era como se o grito dela, silenciado pela sua pervertida omissão, se propagasse agora dentro de mim; e por todo esse quarto... Sabe, numa coisa você tem razão: executar alguém apenas pelo prazer de minhas ambições, realmente não está entre meus atributos. Mas e se eu tivesse uma motivação acima do meu individualismo; capaz de redimir-me do próprio ato, pela imposição de uma justiça divina ou simplesmente de uma lei física, nitzscheana, de eterno retorno ?... Esta seria uma circunstância viável para experimentar algo totalmente novo em minha vida. - confidenciou Ângela, entregando-se a seus devaneios, enquanto suspendia o corpo, descendo a ponta da faca até o pescoço do amante, pressionando-a levemente contra a traqueia. Quando uma gota de sangue começou a escorrer, ainda que pelo tênue contato com a pele, ela pareceu despertar do breve transe de suas divagações, afastando o objeto para acolhê-lo entre as mãos, como se uma parte de sua mente resistisse a usá-lo.
Victor esboçou um sorriso de alívio, tentando articular alguma frase, de uma boca que não mais conseguia obedecê-lo. Porém, seu olhar fitava Ângela com uma enigmática expressão de vitória psicológica, apesar de toda desvantagem física. Para o psicólogo, ela não ousaria atravessar aquela controvertida fronteira, concedendo-lhe forçosamente, uma segunda chance.
Ângela de fato, após alguns segundos de meditação, num gesto precipitado, arremessou a faca para o chão, deitando-se novamente sobre ele, tocando os lábios carinhosamente nos seus, antes de falar ao seu ouvido.
- Vou guardar na memória, os bons momentos que passamos juntos. Mas a tentação do imprevisível, faz parte do poder feminino. Posso confessar uma coisa ?... Vanessa manda lembranças. - argumenta Ângela, puxando o travesseiro repentinamente sob sua cabeça, fazendo-a tombar de forma brusca sobre o colchão. Posicionando o objeto contra o rosto de Victor, passa a pressioná-lo, a princípio com a firmeza de suas mãos; e logo depois, valendo-se do próprio peso do corpo, numa espécie de abraço mortal.
O desespero pela ausência de ar, levou Victor a experimentar instantâneos e convulsivos espasmos, discretos pela ação da droga, antes da letargia absoluta. Ainda deitada sobre ele, Ângela suspirou serenamente, dizendo para si mesma na solidão do quarto: - Adeus, meu amor.
Noite de sexta feira, no outono novaiorquino. Às margens do rio Hudson, com vista privilegiada para a nostálgica iluminação romântica da ilha de Manhattan; o olhar solitariamente introspectivo de uma jovem e atraente mulher, guardava para si, aquele momento único de beleza, enquanto saboreava uma taça de vinho branco, a contemplar o banal e poético passeio de casais apaixonados e famílias felizes, por trás da vidraça daquele aconchegante espaço gastronômico, frequentado em sua maioria por brasileiros; saudosos de um caloroso recanto para sua memórias.
- Excuse me; brazilian tourist ? - arrisca um galante desconhecido, abordando-a na esperança de fazer-lhe companhia.
- Yes ! Mas pode falar na minha língua. Com esta pronúncia, sua cantada em inglês deve ser péssima. - disparou Ângela, com seu habitual humor desconcertante.
- Posso me sentar ? Estava tão linda e pensativa, que não resisti a aproximar-me para conhecê-la melhor.
Ângela sorriu despretensiosamente, expressando no olhar, a permissão que ele tanto desejava. Mas continuou a fixar seu interesse, para a vida de "cartão postal", que pulsava lá fora. O rapaz falava de tudo para conquistar-lhe a atenção; porém apenas uma coisa pareceu acordá-la, do vasto assédio de sua imaginação.
- A noite irá ainda mais bela e misteriosa no início da madrugada. Parece que poderemos assistir a olho nu, pela última vez neste século aquele famoso fenômeno metereológico, conhecido como "Lua de Sangue". Já ouviu falar ?
Ângela limitou-se a observá-lo com estranha curiosidade; que ele interpretou como uma insinuação sedutora, motivando-o a persistir em sua postura elogiosa.
- Seus olhos capturam a gente, com um encantamento raro hoje em dia. Transmitem uma inocência incomum e ao mesmo tempo, comovente.
Ângela não resistiu a uma sonora risada; atraindo olhares de mesas próximas e surpreendendo o rapaz que se percebeu no foco de uma constrangedora exposição.
- Lamento. Você é muito gentil... Mas posso contar-lhe um segredo ? - indagou, colocando os braços na mesa, inclinando-se para frente, a fitá-lo com ironia; enquanto o rapaz sem saber o que dizer aproximava o rosto defendendo-se com um desconcertado sorriso.
- Não existe lugar para inocência neste mundo.