O olhar de serena agonia, expresso escultoricamente, na imagem do Cristo crucificado, parecia comunicar-se silenciosamente com ela; fazendo-a contemplar aquele altar de uma forma incomum. Não demonstrava naquela circunstância, o habitual distanciamento, o tão conhecido desapego diante de ambientações religiosas, característico de sua praticidade cotidiana. Algo naquele templo, em sua inquietante simbologia, remetia-lhe a uma genuína sensibilidade, há muito disciplinada, racionalmente monitorada, no arquivo de suas lembranças. Baixou os olhos, nitidamente marejados, sentindo-se constrangida frente as suas mais arraigadas convicções; como se as traísse inadvertidamente, por um inesperado arrobo emocional, capaz de transportá-la para uma atmosfera interior, de incômoda fragilidade. Chegou a considerar que o motivo de sua perturbadora melancolia, estivesse relacionado à solitária e temerosa expectativa, de que aquele pesadelo onde estava mergulhada por tanto tempo, pudesse finalmente encontrar um desfecho naquela noite. Um ligeiro tremor nas mãos fez com que deixasse escapar ao chão, uma espaçosa bolsa, equilibrada em seu colo; o que chamara a atenção de olhares curiosos, de alguns poucos fiéis, distribuídos ao longo dos extensos e ruidosos bancos de madeira da igreja. Olhou instantâneamente à sua volta, constatando o quanto aquele insignificante ruído, conseguira chamar a atenção de olhares desaprovadores, como se o som mundano da realidade, ferisse mortalmente, a quietude de suas orações. Ao se abaixar, reparou nos objetos que escaparam da bolsa; e enquanto os recuperava, colocando-os de volta, refletiu no quanto era diferente daquelas pessoas. "Bando de hipócritas" (o pensamento quase saltara por sua boca, alcançando a sonoridade desejada). Consideravam dignos, os farsescos apelos de arrependimento, como se estes pudessem aplacar a memória persecutória de suas culpas; compensando as mágoas que deixaram pelo caminho, ou mesmo, calar a ensurdecedora intolerância de seus hábitos de vida. Para ela, arrependimentos não transformavam pessoas. Apenas ofereciam um salvo conduto para novas decepções.
Nesse ínterim, quando já havia recolhido todo o conteúdo para dentro da bolsa, reparou que uma foto envelhecida ameaçava querer abandoná-la, escondendo-se para debaixo do banco dianteiro. Com certa impaciência, esticou o braço imediatamente até o objeto, segurando-o sem conseguir resistir ao impulso de observá-lo detidamente, expressando no olhar uma amarga nostalgia. Na fotografia, uma menina de seus oito anos de idade, pendurava no pescoço do pai, um singelo cordão de ouro, com dois pingentes em forma de coração, entrelaçados. Havia a inscrição de um nome feminino, inteiramente desfocada; porém ela conhecia intimamente a identidade daquela menina feliz. A foto ainda jazia entre seus dedos, quando percebeu que alguém sentara discretamente a seu lado. O indivíduo trajava uma batina negra, que estendia-se até os joelhos. Erguendo os olhos, ela vislumbrou-lhe o perfil, deparando-se com uma cabeleira grisalha, a desenhar-lhe o contorno facial, de tranquila altivez. Os óculos de aros grossos e lentes escurecidas, dificultavam a visualização de seus olhos, demarcados em suas órbitas, por olheiras profundas. Após fazer maquinalmente o sinal da cruz, o velho sacerdote voltou-se para ela, esboçando um sorriso amigável.
- Bela imagem, entre pai e filha. Não a deixe escapar de você, novamente.
- Pode deixar. - respondeu a moça ligeiramente sem graça. - O senhor é sempre assim, tão observador ?
Num movimento reflexo, ela avistou por sobre os ombros, que excetuando-se dois homens ainda ajoelhados, cabeça baixa, compenetrados em suas preces; os poucos fiéis restantes, já se despediam do templo, caminhando para o portão principal.
- Todo o sacerdote deveria ser assim com seus fiéis. A dor de um drama familiar, mantido em segredo, sempre se revela nos detalhes. Como numa foto antiga, cujo registro afetivo, pode casualmente se perder da gente. Você devia ter o quê ? Oito, nove anos ?...
Aquelas palavras calmamente invasivas, começaram a incomodá-la, ao mesmo tempo que aguçavam sua curiosidade.
- Oito. Sem dúvida, foi um dos momentos mais felizes que tive com ele.
- E se me permite a intromissão, num assunto tão pessoal, o que aconteceu ?
A moça não pôde deixar de apreciar, esboçando um leve sorriso entre os lábios, a perspicácia do padre, por reconhecer na ousadia de suas considerações anteriores, o provável início de um mal estar entre eles. Ela respirou fundo, antes de prosseguir em seu relato.
- Um acidente de carro vitimou minha mãe. Ele estava no volante e nunca se perdoou por ter sobrevivido, sem a mulher que tanto amava. Papai já tinha o hábito de beber. O luto intensificou a depressão, levando-o a buscar compulsivamente a bebida. Foi quando se tornou indisfarçável, a dependência química. Tentou me criar sozinho, com a ajuda de meus avós maternos, mas não adiantava; ele se culpava o tempo todo e minha proximidade, além do fato de parecer muito com minha mãe, tornava as coisas mais difíceis... Algum tempo depois, tentou dar uma chance a uma mulher que era realmente apaixonada por ele. Casou-se com ela, mais para me dar uma figura materna, do que por voltar a acreditar numa chance de felicidade.
- E quanto ao vício ? Seu pai consegui superá-lo ?
- Não. Com o passar dos meses, só se agravou. Chegou a ir do álcool, para o uso eventual das drogas; mas depois... Começou a ficar agressivo; hostilizando minha madrasta, chegando numa crise, a ser violento com ela. Ainda me lembro que ao ver o medo estampado nos meus olhos, numa espécie de choque de lucidez, decidiu ir embora; talvez por a partir daquele dia, passar a se considerar uma ameaça para mim.
- Foi a última vez que o viu ?
A moça o encarou surpresa, como se padre pudesse ler seus pensamentos.
- Exatamente; aquela acabou sendo a última imagem dele que guardei da minha infância. Na adolescência, sem o conhecimento de minha madrasta e dos meus avós; tentei localizá-lo pela cidade. Informações difusas, acabaram me levando a um reduto deprimente, um gueto de viciados... ele não me reconheceu, ou então fingiu muito bem. Aos gritos, ordenou que fosse embora. Como me recusei, meu pai é que acabou fugindo, antes que sua fúria se voltasse contra mim.
A moça parou de falar, mergulhando instantâneamente nas lembranças daquele dia. Deixou que o silencio de sua solidão ecoasse melancolicamente, por sua memória afetiva. Após alguns segundos, que pareciam infinitos, ela tentou concluir. - Isso é tudo que o flagrante desta foto, representa para mim hoje. Uma gota de alegria, num mar de desilusões.
- Discordo. Esta imagem envolve muito mais que isso. Tem a ver com estar aqui, diante do altar; na esperança de que um dia, vocês possam se reencontrar. E apesar de todo o sofrimento, que a fraqueza dele forjou em você, talvez ainda busque uma chance de encontrá-lo novamente, para tentar salvá-lo de si mesmo.
Dessa vez aquele tom pregatório, demonstrando a audácia de julgar o caráter de quem mal conhecia, a irritou profundamente.
- Padre, não me leve a mal, mas não estou aqui a procura de migalhas de esperança, como o restante de seu "rebanho", de almas desesperadas. Não acredito na salvação; muito menos naquela que vem pelo caminho da dor sem sentido, a partir dos desígnios de um Deus sádico.
- Calma, minha filha. Por que outro motivo viria até aqui, se não pela busca de uma nova chance de ser feliz ?
- Para mim, este templo é apenas um ponto de encontro. Encontro real, não metafísico, se é que me entende. Aliás, se o senhor me der licença, a pessoa que espero, já deve estar chegando.
- Não se precipite. Às vezes a ansiedade da espera, trapaceia com nossos sentidos, ocultando o que sempre esteve diante dos olhos. "Se é que me entende"...
O timbre da voz do velho padre, alterava-se repentinamente, soando como algo bem familiar. Ele baixou os óculos, fitando-a com intensidade. O reconhecimento daquele olhar, acompanhado do cínico sorriso estampado na fisionomia, foi imediato.
- Lorenzo, é você ?... Mas que loucura é essa ?
- Fale mais baixo. Não queremos chamar a atenção daqueles senhores, lá atrás. Não tem loucura alguma, apenas imaginação. A maquiagem certa, o figurino adequado, o tom de voz "fake", que me remeteu aos bons tempos da dublagem; e pronto. Fiquei testando, quando me reconheceria. Não seria tão cedo. Valeu a pena o teatro, só para conhecer um pouco mais da sua história, dos seus segredos...
- Depois das explosões... apesar de não terem encontrado seu corpo, algo me dizia que ainda estava vivo. Mas ficou dias sem me procurar. Quando me telefonou, cheguei a considerar que fosse uma armadilha da polícia.
- Mas a sorte esteve do seu lado, não é Samara ?... Gostou do meu disfarce ? De alguma forma os anos que dediquei a uma fracassada carreira de ator, sempre acabaram me ajudando, nos momentos mais difíceis. - comenta ironicamente.
- E quanto ao vigário da paróquia ? Ele pode aparecer de uma hora para outra, pondo tudo a perder.
- Só que isto não irá acontecer.
- O que fez com ele ?
- Fique tranquila. Digamos que ele experimentou por livre e espontânea pressão, o primeiro "boa noite, cinderela", da sua vida. Está dormindo como um anjinho nos "aposentos eclesiásticos". Aliás, a batina dele me caiu muito bem, não acha ? - assegura Lorenzo, com desconcertante bom humor. - Mas vamos aos negócios ! Hoje com você, prazer sem limites, só mais tarde. Trouxe os passaportes e a quantia que lhe pedi ?
- Claro, está tudo aqui na bolsa, como combinamos. Antes, preciso de algumas respostas.
- Mulheres e a necessidade geométrica de fechar todos os ângulos da questão.
- Como escapou daquelas explosões ? Alguns corpos chegaram a ser encontrados carbonizados, dificultando a identificação pela perícia. Nosso quarteto estava lá, incluindo seu tio, braço direito das operações. Todos da equipe mortos !...
- Menos nós dois, é claro ! - acrescentou Lorenzo, mantendo o mesmo tom irônico.
- Eu não pedi para ser poupada, só por sermos amantes. Sabe que teria me aventurado naquele último assalto, para realizar o que todos queríamos: fugir desse país.
- Tenho certeza de sua coragem. No entanto, meu amor falou mais alto e veio a comprovar o que a intuição já me dizia. O pior acabou acontecendo. Agentes da Federal já se encontravam no nosso encalço há um bom tempo, ainda que sem sucesso. Porém, nos últimos três meses, a aproximação era cada vez mais presente, como se o exercício da premonição, viesse facilitando as investigações... sempre rondando, ameaçando dar o bote, quase na reta final de nossos planos. Naquele dia foi assim; a profecia se cumpriu. Depois de nosso grupo dominar os funcionários da agência bancária, praticamente de forma cronometrada, neutralizando a ação dos seguranças, controlando os poucos clientes que poderíamos usar em último caso, como "moeda de troca", descobri que não só todo o perímetro do lado de fora, estava cercado, como também, que éramos monitorados de dentro do banco. Policiais à paisana, se passando por correntistas, se dispuseram a reagir, trocando tiros com nosso pessoal. O grupo ficou acuado. Até atiradores de elite, colocaram nas janelas dos edifícios mais próximos. Tornou-se inevitável, dar início ao plano B.
- Você fala de um jeito, como se não estivesse no mesmo barco com eles.
- E não estava. Não naquela hora. Dois dias antes, me valendo de um precioso contato na firma de segurança, substituí um dos funcionários escalados, que alegaria estar doente, não aparecendo para o trabalho. Aproveitei a oportunidade, plantando no interior da agência, explosivos estrategicamente localizados, para o caso de um eventual fracasso da operação. Entenda, Samara... o sacrifício foi necessário. Capturar qualquer um de nós, nunca foi uma opção.
Um prolongado silencio, combinou-se à expressão de perplexidade nos olhos dela. Lorenzo então continuou, valendo-se de absoluta objetividade.
- Na ocasião do assalto, avisei meu tio que você ficaria de fora, junto comigo, dando respaldo logístico, caso algo desse errado. Eles não sabiam dos explosivos. Sinceramente, não imaginei que as coisas fugiriam ao controle daquela maneira. No princípio, este último golpe, além de trazer a riqueza que esperávamos, viria principalmente comprovar uma desconfiança que me acompanhava por muitos meses.
- Nunca pensou neles, não é verdade ? Acionou os explosivos de uma distancia segura, como se não significassem nada para você. Como pôde fazer isso, com sua própria gente ?
Lorenzo pareceu ignorar aquele questionamento, prosseguindo friamente em seu relato.
- Depois da tragédia, entrei disfarçado juntamente com a unidade de resgate dos bombeiros. No meio da confusão, tive a chance de recolher, não dinheiro, pois a maior parte estava destruído; mas sim, a sacola que meu tio carregava, contendo pedras preciosas; o conteúdo mais valioso que eu buscava. Pertenciam ao cofre particular de um senador corrupto, a quem havia prestado alguns favores, sem ter sido devidamente recompensado. As outras sacolas com dinheiro, não passavam de cortina de fumaça, para distrair as autoridades do alvo principal. Foi terrível, concordo com você; e lamento, mesmo que não acredite. O sacrifício deles não foi em vão. Me levou a comprovar a tal desconfiança que mencionei há pouco. Existia um delator entre nós. Certamente, um policial infiltrado, aguardando o momento mais propício para fechar o cerco.
Um silêncio perturbador, voltou a se instaurar entre eles. O olhar de Lorenzo era compenetrado, vigilante, mantendo-se atento ao menor movimento de sua amada.
- Samara, só haviam duas pessoas, longe daquele banco. E uma delas, teve suas ligações do quarto de hotel, onde estava confortavelmente instalada, "grampeadas" por mim. Agora, só entre nós dois: Foi da relaxante banheira de hidromassagem que deu a ordem para nossa captura ?
Enquanto falava pausadamente, olhando fixo para Samara, repousa a mão firmemente sobre o braço dela, na tentativa de descartar a possibilidade de um movimento mais brusco; o que afinal, acabou acontecendo. Lorenzo a conteve, cravando os dedos em sua pele, segurando-lhe o braço violentamente.
- Para, você está me machucando. - implorou ela, demonstrando-se indefesa, ao mesmo tempo em que descia discreta e rapidamente, o outro braço em direção ao tornozelo, enfiando a mão pela barra da calça.
- Nem pense em tentar alguma coisa. - preveniu ele, ao retirar debaixo da batina uma pistola automática, tendo o silenciador já acoplado. Pressionando o cano da arma, na direção da região abdominal, olha para ela intimidando-a silenciosamente.
- Agora, bem devagar, continue a pegar o que estava escondido no seu tornozelo.
Ao olhar para trás, a policial notou que os dois homens posicionados na última fileira de bancos, permaneciam estáticos, estranhamente indiferentes ao que vinha acontecendo. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo instantaneamente, ao imaginar o que Lorenzo teria feito. Era como se ele, conseguisse ler o pensamento dela, naquele instante.
- Disparos precisos na altura da nuca, podem ser muito discretos, sabia ? Não me diga que confiou àqueles amadores, a sua segurança ?... - indagou sarcasticamente, enquanto recolhia da mão de Samara, o longo e estreito objeto metálico, que ocultava em sua perna.
- Belo punhal ! Obrigado pelo presente. Saberei usá-lo no momento certo.
- O que pretende fazer agora ? - pergunta olhando à sua volta, à procura de uma alternativa salvadora.
- Me dê os passaportes e o dinheiro, e larga essa bolsa no chão.
Samara executa lentamente o que lhe ordenara.
- Corredor à esquerda, em direção ao pátio interno. Vamos sair numa ruazinha lateral. Lá, ninguém vai nos ouvir, muito menos nos incomodar. - assegura Lorenzo, enquanto mantém a arma posicionada, erguendo-a forçosamente pelo braço, a fim de que acompanhe o ritmo de seus passos.
A policial percorre os olhos alucinadamente, por todo e qualquer recanto do trajeto, em busca de algum detalhe, que passando despercebido ao seu agressor, pudesse servir como ponto de partida, para uma inusitada possibilidade de fuga.
Assim que atravessa o amplo terreno coberto, onde realizavam-se as festividades paroquianas, uma velha senhora, de estatura mediana, vestindo roupas bem simplórias, ensaiava sua aproximação carregando nos braços, um cão vira lata adormecido. O sorriso ingênuo, sem defesas, de uma inconsequência quase infantil, parecia aliená-la da atmosfera de perigo iminente; contrastando com o aspecto exaurido de uma aparência madura, amargamente impactada, pelo sofrimento da realidade.
Samara pensou que deveria ser uma dessas paroquianas sem recursos, mentalmente fragilizadas, que ali acabavam encontrando um porto seguro; um lugar de moradia e aceitação. em troca de pequenos favores domésticos, capazes de dar conta da rotina funcional da igreja.
- Padre, preciso da sua ajuda. Meu cachorro não para de dormir. Será que está doente ?
Lorenzo diminui os passos, apertando o corpo da policial contra o seu, sem saber ao certo como reagir em tal situação. Respira fundo, contendo o nervosismo, na tentativa de livrar-se daquela presença inoportuna.
- O bichinho está bem; não se preocupe, minha filha. Agora volte para o quarto que amanhã conversamos.
- Mas padre, preciso falar com ele. É meu único amigo. Quando está acordado, não sinto medo das vozes. Não quero que elas voltem, padre ! Acorda ele, por favor ! - implora a velha senhora, tocando-lhe a batina, como quem reverencia uma imagem santa.
Lorenzo irritado, desvia o corpo, dessa vez mostrando-se ameaçador.
- Sai do meu caminho ! Eu não vou pedir de novo.
Era a oportunidade que Samara aguardava. Notando por um instante, a atenção dispersa do criminoso, ela executa uma ação brusca, liberando o braço, até então imobilizado, para desferir em seguida, uma cotovelada precisa, na altura do diafragma de seu agressor. Lorenzo arqueia o corpo involuntariamente, pela dor; mas ao perceber a tentativa de desarmá-lo, lança o peso do mesmo contra o dela, como se arrombasse uma porta, desequilibrando-a e acompanhando a queda inevitável.
Nesse instante o vira lata até então adormecido, abre surpreendentemente os olhos, expressando medo e fúria em meio ao rosnado hostil, seguido por latidos de advertência. A dona, assustada, não consegue contê-lo no colo, testemunhando o salto do animal em direção as pernas de Lorenzo.
Em segundos, antes que tivesse a policial sob sua mira, eie sente uma mandíbula afiada, cravar os dentes em seu calcanhar.
- Desgraçado ! - esbraveja, redirecionando a arma para a cabeça do animal, que não se intimida.
- Padre, não faça isso !
O grito desesperado da pobre mulher, abafa completamente, o discreto ruído do disparo, por efeito do silenciador.
Enquanto a idosa corre aos prantos, batendo com os frágeis punhos cerrados, contra o peito de Lorenzo, este retorna o olhar para o local onde Samara havia caído, sem encontrá-la. Erguendo os olhos à sua frente, acompanha a corrida de sua prisioneira, que praticamente já alcançava a porta de saída daquela grande quadra coberta, dando-lhe acesso à liberdade das ruas. Foi então, que Samara ouvindo nitidamente um segundo disparo, sentiu um calafrio por todo o corpo; hesitando abrir a porta, olhando para trás, angustiada.
O falso sacerdote abraçava a desprotegida e ingênua paroquiana, como se a consolasse por seu sofrimento. A pistola apontada para o chão, indicava que o tiro fora de advertência.
Fitando o ex-amante, que expressava u olhar sordidamente vitorioso, ela paralisa os movimentos, enquanto escuta aquela voz, absolutamente segura.
- Você sabe como tudo isso poderia terminar, não é mesmo ? O que eu ganho, machucando esta pobre infeliz ? Nada. Se me obrigar a fazê-lo, não serei eu a ter puxado o gatilho, selando tragicamente o destino dela; mas você !
Samara distancia-se da porta, encarando-o pensativa, com certa resignação, diante de uma circunstancia incapaz de reverter.
- Agora está sendo razoável. Temos um acordo ? - pondera ele, procurando conter o sorriso entre os lábios.
- Deixa ela em paz ! Tem a minha palavra. - assegura a policial, com veemência.
- Nobre decisão, meu amor. Só você pode salvá-la dessa perigosa inocência que não a permite enxergar a verdadeira maldade humana; como nós tão bem a conhecemos. Faça agora por ela, o que nunca teve a chance de fazer pelo seu pai...
Samara arrisca mais alguns passos, disposta realmente a retornar, mas é alertada pelo próprio algoz, através de um breve gesto, solicitando que pare e aguarde a sua aproximação.
Abraçado a idosa, Lorenzo passa a conduzi-la para longe do corpo do animal abatido, dizendo algumas palavras de conforto ao seu ouvido, ao mesmo tempo em que ajuda a acomodá-la numa confortável cadeira de vime, em frente ao balcão da cantina paroquiana, Ele continua a portar a arma, trazendo-a junto ao corpo e volta-se na direção de Samara; a qual sem esboçar reação, acompanha a sua atitude, assegurando-se de que havia salvado a vida da pobre senhora.
Lorenzo encaminhou-se despreocupadamente, parou diante dela, acariciando-lhe o rosto com um toque de saudosismo em seus olhos. Passando-lhe o braço por sobre os ombros, os dois seguiram abraçados em completo silencio, antes dele abrir a porta, que dava acesso a uma ruazinha mal iluminada; uma estreita travessa, onde àquela hora não se avistava mais qualquer veículo estacionado. Haviam apenas caçambas de lixo, cercadas por alguns colchões rasgados, repletos de restos de comida, de quentinhas remexidas largadas pelo chão, de onde proviam migalhas, salpicando o tecido envelhecido de solitários cobertores, que encobriam sob seus volumes, poucos e dispersos rostos anônimos de desabrigados.
O silencio é interrompido por Samara, numa tentativa de persuasão.
- Acha que vai conseguir me tirar daqui, sem levantar suspeitas ? Tem policiais por todos os cantos, só aguardando a minha saída.
- Tenho certeza disso. Vi quando chegaram e sei o quanto acreditam no fato de que não desconfie de você; de que ainda a vejo como minha amante, minha cúmplice.
Nesse instante, Lorenzo encosta a moça numa parde próxima, arrancando os primeiros botões de sua blusa para deslizar os dedos suavemente pelo decote, percorrendo-lhe o contorno dos seios, tateando da base do sutiã até as alças, verificando a presença de algo, apesar da convicção de que nada encontraria. Observando-a detidamente, com uma intenção maliciosa no debochado sorriso, continuou em seu comentário: - Nem se deram ao trabalho de colocar uma "escuta", acreditando que por sermos íntimos, o contato corporal poderia denunciá-la.
- Aqueles homens na igreja... Matar policiais a sangue frio, é se aventurar por um caminho sem volta. Vão estranhar o fato de não receberem notícias.
- Estou com os celulares deles. Conheço o procedimento. Já enviei mensagens de texto, tranquilizando a equipe de que tudo continua sob controle; a espera do convidado de honra desta noite. - enfatizou ironicamente. - O atraso proposital será o tempo de que dispomos, para nosso acerto de contas. Agora, vamos ! Já lhe dei mais satisfação do que deveria.
- Lorenzo, pense bem no que vai faze Para onde está me levando?
- Enquanto ficarmos juntos, não botar as mãos em mim. E sabe porque ? A lei dos homens, só consegue ver o que a previsibilidade permite. Por isso o crime sempre vai estar em vantagem. É uma forma instintiva de arte. Ele é intuitivo, improvisador, impulsivo sem ser imprudente, como os predadores, no reino animal. Nesses canais de documentário, adoro assistir como os felinos são fiéis a estratégia de sua tocaia. Observam, aguardam, buscam a mais perfeita camuflagem, misturando-se ao ambiente; e posicionam-se contra o vento, a fim de que o cheiro de sua presença não chegue até a sua presa, antes do ataque. E aí, conquistando essa magnífica invisibilidade, começam a caçada. Eu já vinha acompanhando você em cada detalhe. Com quem estava ao telefone, no trabalho, nas redes sociais, até na intimidade do seu quarto, quando levava alguém para satisfazê-la à noite na ausência do seu verdadeiro amante. Acredite, tenho vídeos ótimos; que infelizmente não teremos tempo de assistir juntos. - conclui Lorenzo, num largo sorriso sarcástico.
Continuando a segurá-la pelos ombros, ele diminui os passos, induzindo-a a parar em frente a extensa parede de tijolos de uma antiga mercearia abandonada; na parte mais escura do beco. Afasta-se alguns metros, deixando-a de costas para ele; erguendo simultaneamente a arma, apontando na altura de sua nuca. A ausência daquele sinistro contato corporal, causa um insólito alívio na policial, que não arrisca qualquer atitude, olhando tensa para a superfície vazia e sombria da parede.
- Pode se virar, meu amor.
Samara obedece, após certa hesitação, porém sem baixar os olhos, encarando diretamente o inimigo, na medida em que transparece no seu semblante, uma mistura de indignação e desprezo.
- É disso que sempre gostei em você... altiva até o fim ! Entendo seu compromisso com a lei; mas cá entre nós, policiais infiltrados, mais cedo ou mais tarde, precisam enfrentar o maior dos dilemas. Aquela maldita dualidade entre a defesa da honra e a tentação do poder sem limites, da transgressão. Na maioria dos casos, quando quebramos todas as regras, surge uma ética muito particular, desfazendo facilmente este impasse, por passar a vê-lo como a coisa mais banal do mundo. Poderia ter sido assim, com você. Entre tantas almas corrompidas, por que tinha de fazer a diferença?...
- Não finja lamentar por mim. Sabemos que a covardia do seu ódio, não admite lugar para a compaixão.
- Você fala, como quem imagina estar preparada para morrer.
- E não foi por esta razão. que me trouxe até aqui ?
- A vingança sempre foi uma regra inegociável para mim. Mas não a sua morte. Para pessoas como você, um disparo preciso pode até ser um alívio; uma espécie de prêmio, pelo caráter irredutível, embora terrivelmente equivocado, de seu heroísmo. Todos sentiriam orgulho de seu sacrifício. Seria uma inspiração para outros policiais, que passassem a acreditar nessa justiça de "faz de conta". Mas não vou permitir que glorifiquem sua memória. Quero que tenham consciência de seu fracasso; que sintam pena de você. Através de sua frágil condição humana, viverá a expiação de todos os seus erros, gravada no próprio corpo; para que jamais esqueça o preço de uma traição. Esta sim, é uma morte lamentável. Assistir ao fim de tudo que acredita em vida. Até reconhecer um dia, que a culpa foi unicamente sua.
Em seguida, Lorenzo retira do bolso da calça ainda coberta pela batina, o punhal que roubara da policial; exibindo-o segundos antes de lançá-lo ao chão, aos pés de Samara. Ela observa a cena, visivelmente intrigada.
- Isto acabou sendo uma grata surpresa ! A princípio, ia atirar em você, deixando-a vulnerável como qualquer animal ferido, para depois poder brincar no seu corpo, fazendo-a experimentar sensações inimagináveis, que a fariam implorar por sua morte. Iria causar maior estrago a sua beleza e dignidade do que o que provocou na minha confiança, no meu amor próprio, quando descobri suas mentiras. Faria tudo com as minhas próprias mãos, seguindo o exemplo de meus avós sicilianos; quando contavam para mim na infância, de que maneira os mafiosos marcavam a vida de seus desafetos. Mas o aparecimento do seu brinquedinho, me fez mudar de ideia. Agora, ajoelhe-se ! E pegue o punhal...
Samara continuou a olhar para ele, desta vez estarrecida; convicta do sadismo delirante de suas palavras.
- Faça o que mandei agora ! - insiste despoticamente o criminoso, descendo a mira da arma de fogo, direcionando-a ao estômago de sua vítima.
Ela obedece as ordens, permanecendo em silencio, na esperança de ganhar tempo, até que alguma oportunidade, por mínima que fosse, pudesse surgir, para resgatá-la daquele mórbido jogo psicológico.
- Sabe qual foi meu último trabalho como ator ? Édipo-Rei ! Uma peça fantástica, cujo enredo remetia a muitas coisas que passamos juntos e que nos trouxeram até aqui. A tragédia do nosso destino, nada mais é do que o desastroso resultado de nossas escolhas. E ninguém pode fugir da consequência delas. Você conhece bem a história. Contei, depois de nosso último encontro amoroso, entre taças de vinho e promessas de fidelidade, num futuro bem longe daqui. Lembro o quanto se comoveu, quando descrevi a cena final. Édipo, consciente das desgraças que causou, pelo tortuoso caminho de suas escolhas; num ímpeto de agonia, cega os próprios olhos; diante da filha Antígona. Ela passa então, a guiá-lo pelas ruas da cidade, com a marca da punição em seu rosto; com o estigma da culpa, amaldiçoando para sempre, todos os dias de sua vida.
Samara sente como se o sangue gelasse em suas veias, ao testemunhar a latente crueldade que emergia daquele olhar, daquelas palavras.
- Não pode estar falando sério. Lorenzo, você enlouqueceu !
- Quero seus olhos na escuridão. Faça agora ! - ordena mais uma vez engatilhando a arma.
- Não ! - grita Samara, erguendo-se por impulso. - Esse jogo termina agora !
Lorenzo não pensa duas vezes, ao confrontar tamanha ousadia; alvejando-a com quatro disparos consecutivos em suas pernas, assistindo-a tombar indefesa ao chão. Durante a queda, ela bate a cabeça violentamente no meio fio, enquanto uma trilha de sangue começa a esvair-se pelo corte profundo em sua testa. A imobilidade das pernas, impossibilitava Samara de tentar fugir, na medida em que aumentava seu desespero, pela iminente aproximação do inimigo.
Lorenzo, observando que apesar da inquietante sensação de impotência, ela ainda segurava firmemente o punhal, quase numa atitude reflexa, de autopreservação; ergue o pé lente e vigorosamente, pressionando-o sobre o pulso dela; apertando-o contra o solo, até soltar o objeto. Ao vê-la abandonar a arma, mostrando-se inteiramente rendida, ele se abaixa resgatando o objeto metálico, manuseando-o com habilidade entre os dedos.
- Não adianta... Se quer um serviço bem feito, faça você mesmo. - murmura entre os dentes, pensando em voz alta e direcionando a ponta do objeto perfurante, bem próximo dos olhos da Samara. - Agora, mesmo que quisesse, não teria o ímpeto para realizar o que pedi. Cabe a mim, emprestar a força necessária, para desconstruir este belo rosto, como quem se inspira numa tela de Picasso...
Samara mal conseguia discernir sobre o que ele dizia, entregando-se ao torpor de sua agonia, na solitária expectativa do desenlace derradeiro. No entanto antes que Lorenzo executasse o movimento, experimenta um súbito desequilíbrio, como se algo o puxasse para trás, alavancando-o para cima, com extrema pressão em torno do pescoço. O braço esguio, porém de musculatura bem definida e tensionada, enlaçava, suspendia e afastava o corpo do agressor, de sua vítima quase desfalecida. Lorenzo, sufocado pelo oponente, que parecia querer esmagar-lhe a traqueia, reposiciona o punhal entre os dedos, lançando-o para trás; a desferir um corte contundente, inteiramente às cegas, na face do desconhecido.
Tendo os olhos ainda semicerrados pela dor, a policial consegue vislumbrar o vulto do inesperado visitante, em meio a densa penumbra do ambiente, arriscando-se naquele violento embate corporal com Lorenzo. Os dois caem entre as caçambas de lixo, rolando pelo chão, numa coreografia brutal de movimentos imprecisos, lutando com selvageria, pela sobrevivência.
Nesse ínterim, Samara procura vencer a fraqueza inoperante das pernas, esgueirando-se pelo asfalto, numa última tentativa de salvação. Um gemido prolongado fere a quietude do beco, rompendo o silencio de corpos momentaneamente estáticos, como se o embate entre eles já tivesse um vencedor.
Lorenzo ergue o tórax, segurando o punhal ensanguentado; e elevando-o acima da cabeça para proferir mais um golpe, no corpo do adversário, já sem forças para reagir. Ao puxar o punhal, arrancando-o do corpo ferido, repara pela visão periférica, nos espectadores anônimos que assistiam a tudo, amedrontados, petrificados, sem saberem o que fazer. Eram desabrigados, moradores de rua, exatamente como aquele que teve a coragem suicida de enfrentá-lo. Diante do olhar ameaçador de Lorenzo, eles começam a se afastar, recuando submissos, sentindo que nada poderiam fazer para ajudar o companheiro.
- Isso mesmo; fujam seus vermes ! É só disso que vocês entendem. - incentiva o criminoso, projetando a voz com tirania. - Saiam daqui, antes que eu dê a cada um de vocês, o mesmo destino que reservei para ele. Ao abraçar o punhal com as mãos, levantando-o para desferir um último golpe; ele experimenta uma estranha vertigem, a roubar-lhe a sustentação corporal. Baixa os olhos e observa uma extensa nódoa de sangue, propagar-se pelo tecido escuro da batina. Nesse instante, lembra-se de procurar Samara, sem avistá-la no lugar em que a deixara; mas sim, um pouco mais à frente; corpo estendido, combalido pelos ferimentos, mantendo os cotovelos oportunamente apoiados numa providencial protuberância do asfalto, capaz de propiciar a estabilidade necessária para a mira da pistola automática. O segundo disparo, acontece quase tão imperceptível como o primeiro, acertando o alvo mais uma vez na altura do peito. Lorenzo ainda tenta se manter indiferente a indisfarçável fraqueza de seu corpo, extravasando a incredulidade, num estranho riso contido, seguido de breves espasmos, liberando golfadas de sangue por sua boca. Mesmo assim, ameaça levantar-se, entre sons semelhantes a grunhidos de uma fera encurralada prestes a ser abatida, quando olha frontalmente para Samara, antes do disparo fatal, atingindo-lhe o crânio.
Samara abaixa a arma, respirando aliviada, antes de prosseguir, arrastando-se com imenso sacrifício até o morador de rua, que arriscara a vida para salvá-la.
- Vocês aí, me ajudem ! Parem de se esconder, e façam alguma coisa por este homem.
- O que quer da gente, dona ? - pergunta um deles vencendo o medo de se comprometer.
- Gritem por ajuda. Tem policiais na redondeza. Peçam uma ambulância, rápido.
Enquanto dois desabrigados partem em busca de auxílio, Samara alcança o corpo de Lorenzo, recolhendo de suas vestes, os celulares furtados, dos colegas mortos na igreja. Após teclar com alguma dificuldade, fala ansiosamente ao telefone, informando sua localização, solicitando cuidados médicos, garantindo aos superiores, que a missão havia chegado ao fim.
Não demorou para que o restante dos melancólicos habitantes daquela sombria travessa começassem a se dispersar. Ela reuniu suas últimas forças antes que perdesse os sentidos, arrastando-se cautelosamente até o homem que não hesitou dispor da própria vida por ela. Elevando o corpo, procurou sustentá-lo sobre os braços, conseguindo sentar ao lado de seu benfeitor, sem deixar de avaliar suas condições físicas e nível de consciência.
- Aguenta firme; vamos ficar bem. O socorro já está chegando. - assegura, numa voz acolhedora; a retira a blusa, dobrando-a para tocá-la com a maciez do tecido, contra o vasto ferimento na barriga, visivelmente aflita por conter a hemorragia.
- Fica comigo, não adormeça por favor ! Eu vou falando e tenta se concentrar na minha voz, ok ?
Voltando os olhos para ela, o homem sorri, com uma placidez desconcertante, parecendo contemplar cada traço do seu rosto.
- Moça bonita, não sofra por mim. Todos precisam descansar um dia. Passei por esse mundo, perguntando pelo que valeria viver... só encontrei tristeza, decepção. Agora olho para você e pergunto: pelo que valeria morrer ? E tudo passa a fazer sentido, você entende ?
A fisionomia dele, parcialmente obscurecida pela penumbra, desperta em Samara uma inusitada sensação de familiaridade. Desabotoando-lhe a camisa, para verificar a profundidade do ferimento, identifica casualmente, um singelo cordão dourado de armação delicada, tipicamente infantil, que pendia de seu pescoço. Intrigada, acende a lanterna do celular, trazendo o foco de luz até a ponta do cordão, onde reconhece o pingente de dois corações, com seu nome impresso entre eles. Estarrecida, volta a luminosidade para o semblante daquele enfermo, constatando a mais improvável das circunstâncias: o reencontro com seu pai. Trêmula, ela começa a acariciar seus cabelos, reparando pelo calor da pele e intensa respiração, que o estado febril se agravara.
- É você, meu Deus, é você ! Por que tinha que ser assim ? - questiona perplexa, tomada pela emoção, beijando-lhe a face antes de encostar o rosto levemente sobre sua testa, tentando conter o choro, para assim preservá-lo do impacto da descoberta, enquanto estivesse sob risco de vida. Samara escuta algumas frases aparentemente desconexas e outras com maior grau de lucidez, o que demonstrava nítidos sinais do início de um quadro delirante.
- Eu não podia deixá-la morrer. Tem a idade e os olhos da minha filha. Assim estaria um pouco mais perto da minha menina, fingindo ser o herói que nunca fui para minha família. Moça, prometa que vai procurá-la. Conte o que aconteceu aqui, esta noite. Diga que foi o jeito esquisito que Deus me deu, para provar que a amo.
A expressão em seu olhar, parecia não mais sucumbir à dor; mas extasiar-se pela redentora ação de suas palavras. Buscou o ar, uma última vez, deixando-se seduzir pelo inconfundível aroma da liberdade.
Samara conteve o pranto; e retirou-lhe o cordão colocando-o saudosamente em seu pescoço, enquanto ouvia o incômodo som da realidade; entre sirenes, carros estacionando, vozes desencontradas e passos ansiosos, que vinham em sua direção. No entanto, o amor daquela despedida e a paz daquele reencontro; ninguém poderia roubar de sua memória. Nunca mais.
- Fale mais baixo. Não queremos chamar a atenção daqueles senhores, lá atrás. Não tem loucura alguma, apenas imaginação. A maquiagem certa, o figurino adequado, o tom de voz "fake", que me remeteu aos bons tempos da dublagem; e pronto. Fiquei testando, quando me reconheceria. Não seria tão cedo. Valeu a pena o teatro, só para conhecer um pouco mais da sua história, dos seus segredos...
- Depois das explosões... apesar de não terem encontrado seu corpo, algo me dizia que ainda estava vivo. Mas ficou dias sem me procurar. Quando me telefonou, cheguei a considerar que fosse uma armadilha da polícia.
- Mas a sorte esteve do seu lado, não é Samara ?... Gostou do meu disfarce ? De alguma forma os anos que dediquei a uma fracassada carreira de ator, sempre acabaram me ajudando, nos momentos mais difíceis. - comenta ironicamente.
- E quanto ao vigário da paróquia ? Ele pode aparecer de uma hora para outra, pondo tudo a perder.
- Só que isto não irá acontecer.
- O que fez com ele ?
- Fique tranquila. Digamos que ele experimentou por livre e espontânea pressão, o primeiro "boa noite, cinderela", da sua vida. Está dormindo como um anjinho nos "aposentos eclesiásticos". Aliás, a batina dele me caiu muito bem, não acha ? - assegura Lorenzo, com desconcertante bom humor. - Mas vamos aos negócios ! Hoje com você, prazer sem limites, só mais tarde. Trouxe os passaportes e a quantia que lhe pedi ?
- Claro, está tudo aqui na bolsa, como combinamos. Antes, preciso de algumas respostas.
- Mulheres e a necessidade geométrica de fechar todos os ângulos da questão.
- Como escapou daquelas explosões ? Alguns corpos chegaram a ser encontrados carbonizados, dificultando a identificação pela perícia. Nosso quarteto estava lá, incluindo seu tio, braço direito das operações. Todos da equipe mortos !...
- Menos nós dois, é claro ! - acrescentou Lorenzo, mantendo o mesmo tom irônico.
- Eu não pedi para ser poupada, só por sermos amantes. Sabe que teria me aventurado naquele último assalto, para realizar o que todos queríamos: fugir desse país.
- Tenho certeza de sua coragem. No entanto, meu amor falou mais alto e veio a comprovar o que a intuição já me dizia. O pior acabou acontecendo. Agentes da Federal já se encontravam no nosso encalço há um bom tempo, ainda que sem sucesso. Porém, nos últimos três meses, a aproximação era cada vez mais presente, como se o exercício da premonição, viesse facilitando as investigações... sempre rondando, ameaçando dar o bote, quase na reta final de nossos planos. Naquele dia foi assim; a profecia se cumpriu. Depois de nosso grupo dominar os funcionários da agência bancária, praticamente de forma cronometrada, neutralizando a ação dos seguranças, controlando os poucos clientes que poderíamos usar em último caso, como "moeda de troca", descobri que não só todo o perímetro do lado de fora, estava cercado, como também, que éramos monitorados de dentro do banco. Policiais à paisana, se passando por correntistas, se dispuseram a reagir, trocando tiros com nosso pessoal. O grupo ficou acuado. Até atiradores de elite, colocaram nas janelas dos edifícios mais próximos. Tornou-se inevitável, dar início ao plano B.
- Você fala de um jeito, como se não estivesse no mesmo barco com eles.
- E não estava. Não naquela hora. Dois dias antes, me valendo de um precioso contato na firma de segurança, substituí um dos funcionários escalados, que alegaria estar doente, não aparecendo para o trabalho. Aproveitei a oportunidade, plantando no interior da agência, explosivos estrategicamente localizados, para o caso de um eventual fracasso da operação. Entenda, Samara... o sacrifício foi necessário. Capturar qualquer um de nós, nunca foi uma opção.
Um prolongado silencio, combinou-se à expressão de perplexidade nos olhos dela. Lorenzo então continuou, valendo-se de absoluta objetividade.
- Na ocasião do assalto, avisei meu tio que você ficaria de fora, junto comigo, dando respaldo logístico, caso algo desse errado. Eles não sabiam dos explosivos. Sinceramente, não imaginei que as coisas fugiriam ao controle daquela maneira. No princípio, este último golpe, além de trazer a riqueza que esperávamos, viria principalmente comprovar uma desconfiança que me acompanhava por muitos meses.
- Nunca pensou neles, não é verdade ? Acionou os explosivos de uma distancia segura, como se não significassem nada para você. Como pôde fazer isso, com sua própria gente ?
Lorenzo pareceu ignorar aquele questionamento, prosseguindo friamente em seu relato.
- Depois da tragédia, entrei disfarçado juntamente com a unidade de resgate dos bombeiros. No meio da confusão, tive a chance de recolher, não dinheiro, pois a maior parte estava destruído; mas sim, a sacola que meu tio carregava, contendo pedras preciosas; o conteúdo mais valioso que eu buscava. Pertenciam ao cofre particular de um senador corrupto, a quem havia prestado alguns favores, sem ter sido devidamente recompensado. As outras sacolas com dinheiro, não passavam de cortina de fumaça, para distrair as autoridades do alvo principal. Foi terrível, concordo com você; e lamento, mesmo que não acredite. O sacrifício deles não foi em vão. Me levou a comprovar a tal desconfiança que mencionei há pouco. Existia um delator entre nós. Certamente, um policial infiltrado, aguardando o momento mais propício para fechar o cerco.
Um silêncio perturbador, voltou a se instaurar entre eles. O olhar de Lorenzo era compenetrado, vigilante, mantendo-se atento ao menor movimento de sua amada.
- Samara, só haviam duas pessoas, longe daquele banco. E uma delas, teve suas ligações do quarto de hotel, onde estava confortavelmente instalada, "grampeadas" por mim. Agora, só entre nós dois: Foi da relaxante banheira de hidromassagem que deu a ordem para nossa captura ?
Enquanto falava pausadamente, olhando fixo para Samara, repousa a mão firmemente sobre o braço dela, na tentativa de descartar a possibilidade de um movimento mais brusco; o que afinal, acabou acontecendo. Lorenzo a conteve, cravando os dedos em sua pele, segurando-lhe o braço violentamente.
- Para, você está me machucando. - implorou ela, demonstrando-se indefesa, ao mesmo tempo em que descia discreta e rapidamente, o outro braço em direção ao tornozelo, enfiando a mão pela barra da calça.
- Nem pense em tentar alguma coisa. - preveniu ele, ao retirar debaixo da batina uma pistola automática, tendo o silenciador já acoplado. Pressionando o cano da arma, na direção da região abdominal, olha para ela intimidando-a silenciosamente.
- Agora, bem devagar, continue a pegar o que estava escondido no seu tornozelo.
Ao olhar para trás, a policial notou que os dois homens posicionados na última fileira de bancos, permaneciam estáticos, estranhamente indiferentes ao que vinha acontecendo. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo instantaneamente, ao imaginar o que Lorenzo teria feito. Era como se ele, conseguisse ler o pensamento dela, naquele instante.
- Disparos precisos na altura da nuca, podem ser muito discretos, sabia ? Não me diga que confiou àqueles amadores, a sua segurança ?... - indagou sarcasticamente, enquanto recolhia da mão de Samara, o longo e estreito objeto metálico, que ocultava em sua perna.
- Belo punhal ! Obrigado pelo presente. Saberei usá-lo no momento certo.
- O que pretende fazer agora ? - pergunta olhando à sua volta, à procura de uma alternativa salvadora.
- Me dê os passaportes e o dinheiro, e larga essa bolsa no chão.
Samara executa lentamente o que lhe ordenara.
- Corredor à esquerda, em direção ao pátio interno. Vamos sair numa ruazinha lateral. Lá, ninguém vai nos ouvir, muito menos nos incomodar. - assegura Lorenzo, enquanto mantém a arma posicionada, erguendo-a forçosamente pelo braço, a fim de que acompanhe o ritmo de seus passos.
A policial percorre os olhos alucinadamente, por todo e qualquer recanto do trajeto, em busca de algum detalhe, que passando despercebido ao seu agressor, pudesse servir como ponto de partida, para uma inusitada possibilidade de fuga.
Assim que atravessa o amplo terreno coberto, onde realizavam-se as festividades paroquianas, uma velha senhora, de estatura mediana, vestindo roupas bem simplórias, ensaiava sua aproximação carregando nos braços, um cão vira lata adormecido. O sorriso ingênuo, sem defesas, de uma inconsequência quase infantil, parecia aliená-la da atmosfera de perigo iminente; contrastando com o aspecto exaurido de uma aparência madura, amargamente impactada, pelo sofrimento da realidade.
Samara pensou que deveria ser uma dessas paroquianas sem recursos, mentalmente fragilizadas, que ali acabavam encontrando um porto seguro; um lugar de moradia e aceitação. em troca de pequenos favores domésticos, capazes de dar conta da rotina funcional da igreja.
- Padre, preciso da sua ajuda. Meu cachorro não para de dormir. Será que está doente ?
Lorenzo diminui os passos, apertando o corpo da policial contra o seu, sem saber ao certo como reagir em tal situação. Respira fundo, contendo o nervosismo, na tentativa de livrar-se daquela presença inoportuna.
- O bichinho está bem; não se preocupe, minha filha. Agora volte para o quarto que amanhã conversamos.
- Mas padre, preciso falar com ele. É meu único amigo. Quando está acordado, não sinto medo das vozes. Não quero que elas voltem, padre ! Acorda ele, por favor ! - implora a velha senhora, tocando-lhe a batina, como quem reverencia uma imagem santa.
Lorenzo irritado, desvia o corpo, dessa vez mostrando-se ameaçador.
- Sai do meu caminho ! Eu não vou pedir de novo.
Era a oportunidade que Samara aguardava. Notando por um instante, a atenção dispersa do criminoso, ela executa uma ação brusca, liberando o braço, até então imobilizado, para desferir em seguida, uma cotovelada precisa, na altura do diafragma de seu agressor. Lorenzo arqueia o corpo involuntariamente, pela dor; mas ao perceber a tentativa de desarmá-lo, lança o peso do mesmo contra o dela, como se arrombasse uma porta, desequilibrando-a e acompanhando a queda inevitável.
Nesse instante o vira lata até então adormecido, abre surpreendentemente os olhos, expressando medo e fúria em meio ao rosnado hostil, seguido por latidos de advertência. A dona, assustada, não consegue contê-lo no colo, testemunhando o salto do animal em direção as pernas de Lorenzo.
Em segundos, antes que tivesse a policial sob sua mira, eie sente uma mandíbula afiada, cravar os dentes em seu calcanhar.
- Desgraçado ! - esbraveja, redirecionando a arma para a cabeça do animal, que não se intimida.
- Padre, não faça isso !
O grito desesperado da pobre mulher, abafa completamente, o discreto ruído do disparo, por efeito do silenciador.
Enquanto a idosa corre aos prantos, batendo com os frágeis punhos cerrados, contra o peito de Lorenzo, este retorna o olhar para o local onde Samara havia caído, sem encontrá-la. Erguendo os olhos à sua frente, acompanha a corrida de sua prisioneira, que praticamente já alcançava a porta de saída daquela grande quadra coberta, dando-lhe acesso à liberdade das ruas. Foi então, que Samara ouvindo nitidamente um segundo disparo, sentiu um calafrio por todo o corpo; hesitando abrir a porta, olhando para trás, angustiada.
O falso sacerdote abraçava a desprotegida e ingênua paroquiana, como se a consolasse por seu sofrimento. A pistola apontada para o chão, indicava que o tiro fora de advertência.
Fitando o ex-amante, que expressava u olhar sordidamente vitorioso, ela paralisa os movimentos, enquanto escuta aquela voz, absolutamente segura.
- Você sabe como tudo isso poderia terminar, não é mesmo ? O que eu ganho, machucando esta pobre infeliz ? Nada. Se me obrigar a fazê-lo, não serei eu a ter puxado o gatilho, selando tragicamente o destino dela; mas você !
Samara distancia-se da porta, encarando-o pensativa, com certa resignação, diante de uma circunstancia incapaz de reverter.
- Agora está sendo razoável. Temos um acordo ? - pondera ele, procurando conter o sorriso entre os lábios.
- Deixa ela em paz ! Tem a minha palavra. - assegura a policial, com veemência.
- Nobre decisão, meu amor. Só você pode salvá-la dessa perigosa inocência que não a permite enxergar a verdadeira maldade humana; como nós tão bem a conhecemos. Faça agora por ela, o que nunca teve a chance de fazer pelo seu pai...
Samara arrisca mais alguns passos, disposta realmente a retornar, mas é alertada pelo próprio algoz, através de um breve gesto, solicitando que pare e aguarde a sua aproximação.
Abraçado a idosa, Lorenzo passa a conduzi-la para longe do corpo do animal abatido, dizendo algumas palavras de conforto ao seu ouvido, ao mesmo tempo em que ajuda a acomodá-la numa confortável cadeira de vime, em frente ao balcão da cantina paroquiana, Ele continua a portar a arma, trazendo-a junto ao corpo e volta-se na direção de Samara; a qual sem esboçar reação, acompanha a sua atitude, assegurando-se de que havia salvado a vida da pobre senhora.
Lorenzo encaminhou-se despreocupadamente, parou diante dela, acariciando-lhe o rosto com um toque de saudosismo em seus olhos. Passando-lhe o braço por sobre os ombros, os dois seguiram abraçados em completo silencio, antes dele abrir a porta, que dava acesso a uma ruazinha mal iluminada; uma estreita travessa, onde àquela hora não se avistava mais qualquer veículo estacionado. Haviam apenas caçambas de lixo, cercadas por alguns colchões rasgados, repletos de restos de comida, de quentinhas remexidas largadas pelo chão, de onde proviam migalhas, salpicando o tecido envelhecido de solitários cobertores, que encobriam sob seus volumes, poucos e dispersos rostos anônimos de desabrigados.
O silencio é interrompido por Samara, numa tentativa de persuasão.
- Acha que vai conseguir me tirar daqui, sem levantar suspeitas ? Tem policiais por todos os cantos, só aguardando a minha saída.
- Tenho certeza disso. Vi quando chegaram e sei o quanto acreditam no fato de que não desconfie de você; de que ainda a vejo como minha amante, minha cúmplice.
Nesse instante, Lorenzo encosta a moça numa parde próxima, arrancando os primeiros botões de sua blusa para deslizar os dedos suavemente pelo decote, percorrendo-lhe o contorno dos seios, tateando da base do sutiã até as alças, verificando a presença de algo, apesar da convicção de que nada encontraria. Observando-a detidamente, com uma intenção maliciosa no debochado sorriso, continuou em seu comentário: - Nem se deram ao trabalho de colocar uma "escuta", acreditando que por sermos íntimos, o contato corporal poderia denunciá-la.
- Aqueles homens na igreja... Matar policiais a sangue frio, é se aventurar por um caminho sem volta. Vão estranhar o fato de não receberem notícias.
- Estou com os celulares deles. Conheço o procedimento. Já enviei mensagens de texto, tranquilizando a equipe de que tudo continua sob controle; a espera do convidado de honra desta noite. - enfatizou ironicamente. - O atraso proposital será o tempo de que dispomos, para nosso acerto de contas. Agora, vamos ! Já lhe dei mais satisfação do que deveria.
- Lorenzo, pense bem no que vai faze Para onde está me levando?
- Enquanto ficarmos juntos, não botar as mãos em mim. E sabe porque ? A lei dos homens, só consegue ver o que a previsibilidade permite. Por isso o crime sempre vai estar em vantagem. É uma forma instintiva de arte. Ele é intuitivo, improvisador, impulsivo sem ser imprudente, como os predadores, no reino animal. Nesses canais de documentário, adoro assistir como os felinos são fiéis a estratégia de sua tocaia. Observam, aguardam, buscam a mais perfeita camuflagem, misturando-se ao ambiente; e posicionam-se contra o vento, a fim de que o cheiro de sua presença não chegue até a sua presa, antes do ataque. E aí, conquistando essa magnífica invisibilidade, começam a caçada. Eu já vinha acompanhando você em cada detalhe. Com quem estava ao telefone, no trabalho, nas redes sociais, até na intimidade do seu quarto, quando levava alguém para satisfazê-la à noite na ausência do seu verdadeiro amante. Acredite, tenho vídeos ótimos; que infelizmente não teremos tempo de assistir juntos. - conclui Lorenzo, num largo sorriso sarcástico.
Continuando a segurá-la pelos ombros, ele diminui os passos, induzindo-a a parar em frente a extensa parede de tijolos de uma antiga mercearia abandonada; na parte mais escura do beco. Afasta-se alguns metros, deixando-a de costas para ele; erguendo simultaneamente a arma, apontando na altura de sua nuca. A ausência daquele sinistro contato corporal, causa um insólito alívio na policial, que não arrisca qualquer atitude, olhando tensa para a superfície vazia e sombria da parede.
- Pode se virar, meu amor.
Samara obedece, após certa hesitação, porém sem baixar os olhos, encarando diretamente o inimigo, na medida em que transparece no seu semblante, uma mistura de indignação e desprezo.
- É disso que sempre gostei em você... altiva até o fim ! Entendo seu compromisso com a lei; mas cá entre nós, policiais infiltrados, mais cedo ou mais tarde, precisam enfrentar o maior dos dilemas. Aquela maldita dualidade entre a defesa da honra e a tentação do poder sem limites, da transgressão. Na maioria dos casos, quando quebramos todas as regras, surge uma ética muito particular, desfazendo facilmente este impasse, por passar a vê-lo como a coisa mais banal do mundo. Poderia ter sido assim, com você. Entre tantas almas corrompidas, por que tinha de fazer a diferença?...
- Não finja lamentar por mim. Sabemos que a covardia do seu ódio, não admite lugar para a compaixão.
- Você fala, como quem imagina estar preparada para morrer.
- E não foi por esta razão. que me trouxe até aqui ?
- A vingança sempre foi uma regra inegociável para mim. Mas não a sua morte. Para pessoas como você, um disparo preciso pode até ser um alívio; uma espécie de prêmio, pelo caráter irredutível, embora terrivelmente equivocado, de seu heroísmo. Todos sentiriam orgulho de seu sacrifício. Seria uma inspiração para outros policiais, que passassem a acreditar nessa justiça de "faz de conta". Mas não vou permitir que glorifiquem sua memória. Quero que tenham consciência de seu fracasso; que sintam pena de você. Através de sua frágil condição humana, viverá a expiação de todos os seus erros, gravada no próprio corpo; para que jamais esqueça o preço de uma traição. Esta sim, é uma morte lamentável. Assistir ao fim de tudo que acredita em vida. Até reconhecer um dia, que a culpa foi unicamente sua.
Em seguida, Lorenzo retira do bolso da calça ainda coberta pela batina, o punhal que roubara da policial; exibindo-o segundos antes de lançá-lo ao chão, aos pés de Samara. Ela observa a cena, visivelmente intrigada.
- Isto acabou sendo uma grata surpresa ! A princípio, ia atirar em você, deixando-a vulnerável como qualquer animal ferido, para depois poder brincar no seu corpo, fazendo-a experimentar sensações inimagináveis, que a fariam implorar por sua morte. Iria causar maior estrago a sua beleza e dignidade do que o que provocou na minha confiança, no meu amor próprio, quando descobri suas mentiras. Faria tudo com as minhas próprias mãos, seguindo o exemplo de meus avós sicilianos; quando contavam para mim na infância, de que maneira os mafiosos marcavam a vida de seus desafetos. Mas o aparecimento do seu brinquedinho, me fez mudar de ideia. Agora, ajoelhe-se ! E pegue o punhal...
Samara continuou a olhar para ele, desta vez estarrecida; convicta do sadismo delirante de suas palavras.
- Faça o que mandei agora ! - insiste despoticamente o criminoso, descendo a mira da arma de fogo, direcionando-a ao estômago de sua vítima.
Ela obedece as ordens, permanecendo em silencio, na esperança de ganhar tempo, até que alguma oportunidade, por mínima que fosse, pudesse surgir, para resgatá-la daquele mórbido jogo psicológico.
- Sabe qual foi meu último trabalho como ator ? Édipo-Rei ! Uma peça fantástica, cujo enredo remetia a muitas coisas que passamos juntos e que nos trouxeram até aqui. A tragédia do nosso destino, nada mais é do que o desastroso resultado de nossas escolhas. E ninguém pode fugir da consequência delas. Você conhece bem a história. Contei, depois de nosso último encontro amoroso, entre taças de vinho e promessas de fidelidade, num futuro bem longe daqui. Lembro o quanto se comoveu, quando descrevi a cena final. Édipo, consciente das desgraças que causou, pelo tortuoso caminho de suas escolhas; num ímpeto de agonia, cega os próprios olhos; diante da filha Antígona. Ela passa então, a guiá-lo pelas ruas da cidade, com a marca da punição em seu rosto; com o estigma da culpa, amaldiçoando para sempre, todos os dias de sua vida.
Samara sente como se o sangue gelasse em suas veias, ao testemunhar a latente crueldade que emergia daquele olhar, daquelas palavras.
- Não pode estar falando sério. Lorenzo, você enlouqueceu !
- Quero seus olhos na escuridão. Faça agora ! - ordena mais uma vez engatilhando a arma.
- Não ! - grita Samara, erguendo-se por impulso. - Esse jogo termina agora !
Lorenzo não pensa duas vezes, ao confrontar tamanha ousadia; alvejando-a com quatro disparos consecutivos em suas pernas, assistindo-a tombar indefesa ao chão. Durante a queda, ela bate a cabeça violentamente no meio fio, enquanto uma trilha de sangue começa a esvair-se pelo corte profundo em sua testa. A imobilidade das pernas, impossibilitava Samara de tentar fugir, na medida em que aumentava seu desespero, pela iminente aproximação do inimigo.
Lorenzo, observando que apesar da inquietante sensação de impotência, ela ainda segurava firmemente o punhal, quase numa atitude reflexa, de autopreservação; ergue o pé lente e vigorosamente, pressionando-o sobre o pulso dela; apertando-o contra o solo, até soltar o objeto. Ao vê-la abandonar a arma, mostrando-se inteiramente rendida, ele se abaixa resgatando o objeto metálico, manuseando-o com habilidade entre os dedos.
- Não adianta... Se quer um serviço bem feito, faça você mesmo. - murmura entre os dentes, pensando em voz alta e direcionando a ponta do objeto perfurante, bem próximo dos olhos da Samara. - Agora, mesmo que quisesse, não teria o ímpeto para realizar o que pedi. Cabe a mim, emprestar a força necessária, para desconstruir este belo rosto, como quem se inspira numa tela de Picasso...
Samara mal conseguia discernir sobre o que ele dizia, entregando-se ao torpor de sua agonia, na solitária expectativa do desenlace derradeiro. No entanto antes que Lorenzo executasse o movimento, experimenta um súbito desequilíbrio, como se algo o puxasse para trás, alavancando-o para cima, com extrema pressão em torno do pescoço. O braço esguio, porém de musculatura bem definida e tensionada, enlaçava, suspendia e afastava o corpo do agressor, de sua vítima quase desfalecida. Lorenzo, sufocado pelo oponente, que parecia querer esmagar-lhe a traqueia, reposiciona o punhal entre os dedos, lançando-o para trás; a desferir um corte contundente, inteiramente às cegas, na face do desconhecido.
Tendo os olhos ainda semicerrados pela dor, a policial consegue vislumbrar o vulto do inesperado visitante, em meio a densa penumbra do ambiente, arriscando-se naquele violento embate corporal com Lorenzo. Os dois caem entre as caçambas de lixo, rolando pelo chão, numa coreografia brutal de movimentos imprecisos, lutando com selvageria, pela sobrevivência.
Nesse ínterim, Samara procura vencer a fraqueza inoperante das pernas, esgueirando-se pelo asfalto, numa última tentativa de salvação. Um gemido prolongado fere a quietude do beco, rompendo o silencio de corpos momentaneamente estáticos, como se o embate entre eles já tivesse um vencedor.
Lorenzo ergue o tórax, segurando o punhal ensanguentado; e elevando-o acima da cabeça para proferir mais um golpe, no corpo do adversário, já sem forças para reagir. Ao puxar o punhal, arrancando-o do corpo ferido, repara pela visão periférica, nos espectadores anônimos que assistiam a tudo, amedrontados, petrificados, sem saberem o que fazer. Eram desabrigados, moradores de rua, exatamente como aquele que teve a coragem suicida de enfrentá-lo. Diante do olhar ameaçador de Lorenzo, eles começam a se afastar, recuando submissos, sentindo que nada poderiam fazer para ajudar o companheiro.
- Isso mesmo; fujam seus vermes ! É só disso que vocês entendem. - incentiva o criminoso, projetando a voz com tirania. - Saiam daqui, antes que eu dê a cada um de vocês, o mesmo destino que reservei para ele. Ao abraçar o punhal com as mãos, levantando-o para desferir um último golpe; ele experimenta uma estranha vertigem, a roubar-lhe a sustentação corporal. Baixa os olhos e observa uma extensa nódoa de sangue, propagar-se pelo tecido escuro da batina. Nesse instante, lembra-se de procurar Samara, sem avistá-la no lugar em que a deixara; mas sim, um pouco mais à frente; corpo estendido, combalido pelos ferimentos, mantendo os cotovelos oportunamente apoiados numa providencial protuberância do asfalto, capaz de propiciar a estabilidade necessária para a mira da pistola automática. O segundo disparo, acontece quase tão imperceptível como o primeiro, acertando o alvo mais uma vez na altura do peito. Lorenzo ainda tenta se manter indiferente a indisfarçável fraqueza de seu corpo, extravasando a incredulidade, num estranho riso contido, seguido de breves espasmos, liberando golfadas de sangue por sua boca. Mesmo assim, ameaça levantar-se, entre sons semelhantes a grunhidos de uma fera encurralada prestes a ser abatida, quando olha frontalmente para Samara, antes do disparo fatal, atingindo-lhe o crânio.
Samara abaixa a arma, respirando aliviada, antes de prosseguir, arrastando-se com imenso sacrifício até o morador de rua, que arriscara a vida para salvá-la.
- Vocês aí, me ajudem ! Parem de se esconder, e façam alguma coisa por este homem.
- O que quer da gente, dona ? - pergunta um deles vencendo o medo de se comprometer.
- Gritem por ajuda. Tem policiais na redondeza. Peçam uma ambulância, rápido.
Enquanto dois desabrigados partem em busca de auxílio, Samara alcança o corpo de Lorenzo, recolhendo de suas vestes, os celulares furtados, dos colegas mortos na igreja. Após teclar com alguma dificuldade, fala ansiosamente ao telefone, informando sua localização, solicitando cuidados médicos, garantindo aos superiores, que a missão havia chegado ao fim.
Não demorou para que o restante dos melancólicos habitantes daquela sombria travessa começassem a se dispersar. Ela reuniu suas últimas forças antes que perdesse os sentidos, arrastando-se cautelosamente até o homem que não hesitou dispor da própria vida por ela. Elevando o corpo, procurou sustentá-lo sobre os braços, conseguindo sentar ao lado de seu benfeitor, sem deixar de avaliar suas condições físicas e nível de consciência.
- Aguenta firme; vamos ficar bem. O socorro já está chegando. - assegura, numa voz acolhedora; a retira a blusa, dobrando-a para tocá-la com a maciez do tecido, contra o vasto ferimento na barriga, visivelmente aflita por conter a hemorragia.
- Fica comigo, não adormeça por favor ! Eu vou falando e tenta se concentrar na minha voz, ok ?
Voltando os olhos para ela, o homem sorri, com uma placidez desconcertante, parecendo contemplar cada traço do seu rosto.
- Moça bonita, não sofra por mim. Todos precisam descansar um dia. Passei por esse mundo, perguntando pelo que valeria viver... só encontrei tristeza, decepção. Agora olho para você e pergunto: pelo que valeria morrer ? E tudo passa a fazer sentido, você entende ?
A fisionomia dele, parcialmente obscurecida pela penumbra, desperta em Samara uma inusitada sensação de familiaridade. Desabotoando-lhe a camisa, para verificar a profundidade do ferimento, identifica casualmente, um singelo cordão dourado de armação delicada, tipicamente infantil, que pendia de seu pescoço. Intrigada, acende a lanterna do celular, trazendo o foco de luz até a ponta do cordão, onde reconhece o pingente de dois corações, com seu nome impresso entre eles. Estarrecida, volta a luminosidade para o semblante daquele enfermo, constatando a mais improvável das circunstâncias: o reencontro com seu pai. Trêmula, ela começa a acariciar seus cabelos, reparando pelo calor da pele e intensa respiração, que o estado febril se agravara.
- É você, meu Deus, é você ! Por que tinha que ser assim ? - questiona perplexa, tomada pela emoção, beijando-lhe a face antes de encostar o rosto levemente sobre sua testa, tentando conter o choro, para assim preservá-lo do impacto da descoberta, enquanto estivesse sob risco de vida. Samara escuta algumas frases aparentemente desconexas e outras com maior grau de lucidez, o que demonstrava nítidos sinais do início de um quadro delirante.
- Eu não podia deixá-la morrer. Tem a idade e os olhos da minha filha. Assim estaria um pouco mais perto da minha menina, fingindo ser o herói que nunca fui para minha família. Moça, prometa que vai procurá-la. Conte o que aconteceu aqui, esta noite. Diga que foi o jeito esquisito que Deus me deu, para provar que a amo.
A expressão em seu olhar, parecia não mais sucumbir à dor; mas extasiar-se pela redentora ação de suas palavras. Buscou o ar, uma última vez, deixando-se seduzir pelo inconfundível aroma da liberdade.
Samara conteve o pranto; e retirou-lhe o cordão colocando-o saudosamente em seu pescoço, enquanto ouvia o incômodo som da realidade; entre sirenes, carros estacionando, vozes desencontradas e passos ansiosos, que vinham em sua direção. No entanto, o amor daquela despedida e a paz daquele reencontro; ninguém poderia roubar de sua memória. Nunca mais.